FISCALIZAÇÃO CONCRETA DA CONSTITUCIONALIDADE | OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA | SERVIÇO MILITAR | SERVIÇO CÍVICO | TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

 

Tribunal Constitucional, acórdão n.º 681/95, 05.12.1995

 

JURISDIÇÃO: Constitucional

ASSUNTO: Fiscalização concreta da constitucionalidade; objeção de consciência

JUIZ RELATOR: Monteiro Dinis

DECISÃO: Não inconstitucionalidade da norma constante da alínea d) do n.º 3 do artigo 18.º da Lei n.º 7/92, de 12 de maio, que exige declaração expressa de disponibilidade do objetor de consciência ao serviço militar para cumprir serviço cívico alternativo.

REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNO:

Constituição da República Portuguesa (artigos 18.º, 41.º e 276.º)

Lei n.º 7/92, de 12 de maio (Lei sobre objeção de consciência)

Lei n.º 6/85, de 4 de maio, alterada pela Lei n.º 101/88, de 25 de agosto (Lei do objetor de consciência perante o serviço militar obrigatório)

Lei n.º 30/87, de 7 de julho, alterada pela Lei n.º 89/88, de 1 de agosto (Lei do Serviço Militar)

Decreto-Lei n.º 463/88, de 15 de dezembro (Regulamento do Serviço Militar)

Constituição de 1933 (artigo 8.º, n.º 3)

Constituição de 1911 (artigo 3.º)

Constituição de 1838 (artigo 11.º)

Carta Constitucional de 1826 (artigo 145.º §)

Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 99/88, 74/84, 201/86, 413/89, 451/89, 370/91, 474/89, 65/91

REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNACIONAL:

Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 18.º)

Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 9.º)

Decisão da Comissão Europeia dos Direitos Humanos, de 11 de outubro de 1984, queixa n.º 10410/83

REFERÊNCIAS DE DIREITO ESTRANGEIRO:

Constituição da República Federal da Alemanha (artigo 4.º)

Constituição da Áustria de 1975 (artigo 9.º)

Constituição de Weimar de 1919 (artigo 135.º)

Constituição da Alemanha de 1849 (§ 144)

Constituição da Áustria

Constituição da Suíça de 1874 (artigo 49.º)

Constituição do Estado da Pensilvânia 1776 (artigo 8.º)

Constituição do Estado de Vermont 1777 (artigo 9.º)

Constituição do Estado de Delaware 1776 (secção 10)

Constituição do Estado de New Hampshire 1784 (artigo 13.º)

Lei alemã do Serviço Cívico (§ 15)

PALAVRAS-CHAVE: Objeção de consciência; Liberdade de consciência, de religião e de culto; Testemunha de Jeová; serviço cívico; serviço militar; princípio da igualdade; Comissão Nacional de Objeção de Consciência; defesa da Pátria; serviço militar não armado; motivações de ordem humanística ou filosófica; padrões de valoração ética ou moral; motivos de consciência; intimidade da pessoa; convicções pessoais; direitos e deveres dos cidadãos; deveres para com a comunidade; inaceitável situação de privilégio; ditames de consciência; autonomia individual; dever fundamental de solidariedade; objetor total; fatores de identificação e auto-entendimento do ser humano; adesão interior aos valores coletivos; comportamento socialmente exigido; valor da tolerância; dignidade da pessoa humana; livre desenvolvimento da personalidade; ser-com-os-outros; estatuto do objetor de consciência; reserva mental; Igreja Católica; secularização do Estado; Concílio Vaticano II; confissão religiosa; imperativo religioso; proibição bíblica de matar; Deus; integridade moral da pessoa; minorias; dever geral de obediência à lei; fundamentalista; lei revelada por Deus; confissões protestantes; menonitas, Quakers; cristianismo pré-constantiniano; direito à tolerância; confissões religiosas pacifistas; imperativo de consciência; coerência moral; individualismo ético; liberdade negativa; seriedade das convicções

COMENTÁRIO:

  1. O presente acórdão do Tribunal Constitucional trata uma questão que assume relevante interesse principiológico e dogmático e que, simultaneamente, tem (teve) especial importância prática, uma vez que se debruça, latamente, sobre a objeção de consciência face ao serviço militar obrigatório. Se esta é questão que, hoje, face ao fim da obrigatoriedade de prestação de serviço militar, deixou de dotar-se da mesma operatividade, a discussão em torno do problema da objeção de consciência mantém extrema relevância, nomeadamente quanto a um conjunto de outros âmbitos (tratamentos médicos, etc.). Em boa verdade, as questões relacionadas com a liberdade religiosa, a liberdade de consciência e a liberdade de culto, muito embora aparentemente pacificadas pela consolidação de mais de 40 anos da nossa Constituição, continuam a suscitar vivo debate e, muitas vezes, posições extremadas e pouco conciliatórias, concitando mesmo a intervenção jurídico-penal. Para lá da discussão que se pode gerar a esse nível, nomeadamente no que diz respeito ao domínio dos crimes culturalmente motivados e das causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, não são de menor relevância as reflexões que têm de fazer-se a propósito dos comportamentos e políticas de inclusão/exclusão e das práticas discriminatórias.

 

  1. No caso concreto, muito embora a objeção de consciência diga respeito a uma pessoa que professa o culto das Testemunhas de Jeová, a circunstância não é expressamente referenciada ou ponderada pelo Tribunal, que não individualiza o motivo da objeção de consciência nem discute a sua validade, aceitando-a intrinsecamente. É de especial relevo a votação com que foi tirado o Acórdão (sete votos favoráveis, seis votos contra), em que a posição de não inconstitucionalidade que fez vencimento obteve apenas a margem mínima e as declarações de voto adquirem especial relevância.

 

  1. O processo tem por base uma decisão tomada pela Comissão Nacional de Objeção de Consciência, a 28 de setembro de 1994, que indefere liminarmente a declaração de objeção de consciência por não conter a declaração expressa da disponibilidade do declarante para cumprir serviço cívico alternativo [conforme imposto pela alínea d) do n.º 3 do artigo 18.º da Lei n.º 7/92 (Lei sobre Objeção de Consciência)]. Esta decisão foi impugnada pelo requerente, que recorreu para o Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, suscitando a inconstitucionalidade daquele preceito, por violação do disposto nos artigos 41.º, n.º 6, e 276.º, n.os 4 e 5, da Constituição. Aquele Tribunal negou provimento ao recurso, indeferindo a pretensão de inconstitucionalidade suscitada pelo requerente; decisão que foi, depois, confirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo. Essencialmente, o argumento foi o seguinte: a obrigação de o objetor de consciência prestar serviço cívico de duração e penosidade equivalentes à do serviço militar armado é diretamente imposta pelo n.º 4 do artigo 276.º da Constituição, correspondendo ao sinalagma do direito à objeção de consciência garantido pelo artigo 41.º, n.º 6. Trata-se, nessa medida, de um ónus ou de uma limitação de um direito que tem assento na própria Lei Fundamental não sendo, por isso, possível colocar sequer o problema da inconstitucionalidade. Insatisfeito com as referidas decisões, o recorrente levou a questão ao Tribunal Constitucional, considerando, de modo sucinto, que a restrição feita na alínea d) do n.º 3 do artigo 18.º da Lei n.º 7/92, de 12 de maio, é contrária ao disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 41.º, n.º 6, e 276.º, n.º 4, todos da CRP (não consta do aresto a transcrição ou a referência expressa ao teor das alegações do recorrente).

 

  1. Efetivamente, se é certo que o n.º 1 do artigo 41.º da CRP estabelece que “a liberdade de consciência, de religião e de culto é direito inviolável”, o seu n.º 2 vem esclarecer que “ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa”. Nestes termos, garantindo a Constituição, expressamente, o direito à objeção de consciência (n.º 6 do artigo 41.º), o mesmo é assegurado “nos termos da lei”. No que em concreto respeita ao serviço militar, o artigo 276.º fixa a defesa da Pátria como direito e dever fundamental de todos os portugueses (n.º 1), estabelecendo uma norma específica relativa aos objetores de consciência: “os objetores de consciência ao serviço militar a que legalmente estejam sujeitos prestarão serviço cívico de duração e penosidade equivalentes à do serviço militar armado” (n.º 4). Esta objeção de consciência foi, mais tarde, regulamentada em lei, primeiro através da Lei n.º 6/85, de 4 de maio, alterada pela Lei n.º 101/88, de 25 de agosto (Lei do Objetor de Consciência perante o Serviço Militar Obrigatório), e depois através da Lei n.º 7/92, de 12 de maio (Lei sobre a Objeção de Consciência). Para o que aqui em particular releva, este diploma estabelece que o processo de aquisição do estatuto de objetor de consciência tem natureza administrativa e inicia-se com a apresentação pelo interessado de uma declaração de objeção de consciência (artigo 18.º), que deve ser instruída com um conjunto de elementos e documentos, de entre os quais avulta “a declaração expressa da disponibilidade do declarante para cumprir o serviço cívico alternativo” [alínea d) do n.º 3].

 

  1. O Tribunal Constitucional considerou, de modo bastante conciso e louvando-se já em decisões anteriores (como a do acórdão n.º 65/91), que a objeção de consciência é um direito que resulta como corolário da liberdade de consciência, constituindo-se como o “direito que cada um tem de agir conformemente ao juízo da sua própria consciência, imune, portanto, a qualquer coacção do Estado ou da sociedade – imunidade esta que arranca do facto de o juízo de consciência pertencer ao âmbito de intimidade da pessoa”. Sublinhando que a objeção de consciência abrange diversos domínios, cabendo ao legislador ordinário delimitar o seu âmbito concreto e regular o seu exercício, dentro dos limites estabelecidos pelo artigo 18.º da Constituição, lembrou o Tribunal que, no caso do serviço militar, a Constituição define diretamente um quadro normativo no qual, dialeticamente, se situam o direito à objeção de consciência e o dever de prestação do serviço militar enquanto obrigação inerente à defesa da Pátria. Assim, tendo em conta o princípio da igualdade de encargos perante a coletividade, o Tribunal considerou que o reconhecimento geral do direito à objeção de consciência, entendido como consequência da liberdade de consciência, demandava que, em substituição do serviço militar, se admitisse uma forma de cumprimento dos deveres para com a comunidade que se traduzisse num sucedâneo daquele serviço para os objetores de consciência, não envolvendo na sua prestação qualquer colisão com aquela liberdade. Efetivamente, sendo a defesa da Pátria um (direito e) dever fundamental de todos os portugueses, o serviço militar (obrigatório, à data) não constitui a única forma de dar satisfação a tal dever, tal como, aliás, resulta do artigo 276.º da CRP, pelo que a prestação obrigatória de serviço cívico pelos objetores de consciência não corresponde a uma modalidade de cumprimento do serviço militar, mas antes a um modo diferenciado de cumprir os deveres para com a comunidade. Não viu o Tribunal, portanto, inconstitucionalidade na norma em causa, partindo do princípio de que o dever de prestar serviço cívico resulta da própria Constituição, haja ou não aceitação prévia do objetor, e considerando a declaração exigida na norma em causa um ónus que condiciona o exercício do direito, mas que está já ínsita (ainda que implicitamente) no texto constitucional.

 

  1. Deve notar-se, portanto, que o texto da decisão do Tribunal Constitucional não toca, em nenhum momento, o motivo que sustentou a objeção de consciência, não a pondo em causa, nem faz qualquer referência específica ao culto Testemunhas de Jeová. Toda a sua argumentação gira em torno da liberdade de consciência, entendida como pertencendo ao conjunto dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, e da necessidade da sua articulação com outro valor constitucional fundamental, o direito e dever de defesa da Pátria. Curioso verificar, ainda, que o Tribunal reconhece existir ainda um outro argumento relevante nesta matéria [o facto de a responsabilidade criminal gerada pelo não cumprimento do serviço cívico ser mais grave do que a derivada do não acatamento do dever de incorporação militar, nos termos dos artigos 33.º da Lei n.º 7/92 e 24.º, n.º 3, e 40.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 30/87, de 7 de Julho, na redação da Lei n.º 89/88, de 5 de Agosto], mas que não conhece por não fazerem aquelas normas parte do objeto do pedido – muito embora pareça assumir, de modo perfunctório, que não será razão que gere inconstitucionalidade.

 

  1. De muito relevo neste acórdão são, todavia, as declarações de voto, tal como referimos, uma vez que a questão foi aí amplamente debatida (porventura de modo mais aprofundado do que no corpo da decisão propriamente dita). Na primeira dessas declarações, a Conselheira Maria Fernanda Palma considera que a limitação imposta é inconstitucional por violação dos n.os 1 e 2 do artigo 18.º da CRP, na medida em que o cumprimento de dever cívico é consequência e não pressuposto do exercício do direito à objeção de consciência ao serviço militar, não podendo a lei impor uma limitação que a Constituição não prevê (não pode a lei ordinária fazer depender a objeção de consciência ao serviço militar de uma não objeção de consciência ao serviço cívico). Para o que aqui nos interessa em particular, são relevantes as reflexões que a Conselheira expende a propósito da liberdade de consciência como fundamento e limite das normas de Estado de Direito democrático, que concebe com distintas dimensões: o Estado de Direito impõe-se “a partir da adesão livre da consciência e da razão e não pela mera coercibilidade das suas normas; isto significa ainda que a legitimidade jurídica tem como critério a racionalidade, a consensualidade e a aceitabilidade das normas”, por um lado; por outro, “o Estado de direito democrático pressupõe a realização dos seus objectivos sem uma adesão interior aos valores colectivos, não visando formar a consciência no seu íntimo, mas conformar, no plano puramente externo, comportamentos sociais”; e, por fim, “a preservação da liberdade de consciência, da não conformação da consciência pelo Estado e pelo seu poder coactivo, é, em si mesma, um valor final do Estado de direito democrático”.

 

  1. A declaração de voto do Conselheiro José de Sousa Brito (a que também aderiu o Conselheiro Guilherme da Fonseca) é particularmente relevante no acórdão em análise, não apenas porque se opõe à decisão que obteve vencimento, mas sobretudo porque escalpeliza a questão em debate, configurando um estudo aturado sobre o tema, com profusas referências bibliográficas, legislativas e jurisprudenciais. A tese sufragada neste ponto sustenta a inconstitucionalidade da norma em causa por duplo fundamento: violação dos artigos 41.º, n.º 6, e 276.º da CRP, ao negar ao objetor de consciência o respetivo estatuto; violação do artigo 18.º, n.º 2, ao estabelecer uma restrição desnecessária a um direito fundamental. E, para o fazer, analisa cinco aspetos essenciais, que nos parecem merecer alguma atenção adicional. Em primeiro lugar, considera-se essencial ter em conta as consequências ou efeitos da norma em causa, o que na decisão que obteve vencimento não foi feito. Assim, faz-se notar que o desrespeito pela alínea d) do n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 7/92, ou seja, a não entrega de declaração onde expressamente se aceite a prestação de serviço cívico, conduz ao indeferimento liminar do pedido (nos termos do artigo 21.º) e consequente não obtenção do estatuto de objetor de consciência. O cidadão continuará, nessa medida, sujeito às obrigações militares e será chamado à incorporação. Ao recusar-se a fazê-lo (como sucederá de acordo com a sua consciência), será considerado refratário, cometendo o crime respetivo (que cometerá sucessivamente, em todas as convocatórias anuais à incorporação, até aos 35 anos, idade em que cessam as obrigações militares).

 

  1. Em segundo lugar, o Conselheiro José de Sousa Brito trata o direito de objeção de consciência previsto na CRP, fazendo uma viagem histórico-normativa pelos seus fundamentos, razão de ser, âmbito e sentido – este exercício parece-nos particularmente frutuoso para o que aqui nos ocupa, uma vez que os seus resultados são úteis para a reflexão (global) sobre o problema, independentemente das concretas manifestações que assuma. Começando por ir procurar as raízes da norma portuguesa ao artigo 4.º da Constituição alemã (única que, à altura, reconhecia o direito à objeção de consciência) e debruçando-se igualmente sobre os antecedentes existentes no constitucionalismo norte-americano, explica-se como os textos alemão e português consagram a objeção de consciência como direito fundamental, decorrente da liberdade de consciência. E como esta não está necessariamente relacionada com questões de índole religiosa (como sucedia na Carta Constitucional de 1826, na Constituição de 1838 e não Constituição de 1933), mas antes se exprime em convicções que podem ser também filosóficas ou ideológicas, afirmando-se como “liberdade ‘completa’, embora limitada pelas ‘leis gerais do Estado’[:] o grande passo em frente que a Lei Fundamental alemã, e depois a Constituição portuguesa, dão aqui, para além dos próprios antecedentes constitucionais e das declarações internacionais dos direitos do homem, é reconhecerem o direito à manifestação exterior da liberdade de consciência fora da esfera da prática religiosa ou semelhante, na prática geral da vida” – o que se revela, exatamente, no reconhecimento da objeção de consciência. O que está em causa, afinal, é o direito de recusar uma obrigação legal, em nome da consciência individual, resolvendo o conflito pela prevalência do princípio da inviolabilidade de consciência sobre o princípio da generalidade da lei. Nessa medida, a objeção de consciência representa, como nos diz a declaração de voto, a transformação do princípio da tolerância, anterior ao Estado constitucional, num verdadeiro direito humano. Trata-se, na verdade, da assunção plena de que “a consciência individual é o principal suporte ético do Estado de direito democrático, que baseia a força das suas normas na convicção íntima das pessoas que defendem os seus valores e lhe dão razão, mais do que no receio das suas sanções”, sendo, igualmente, “a última e decisiva barreira contra as ditaduras”.

 

  1. Avançando, depois, em concreto para a análise da possibilidade de violação no n.º 6 do artigo 41.º e do artigo 276.º da CRP, o Conselheiro explora o conceito de “objetor total” (aquele que objeta ao serviço militar e, igualmente, ao serviço cívico), debruçando-se, especificamente, ao contrário do que fez a maioria que obteve vencimento, sobre as testemunhas de Jeová, que, por imperativo religioso, objetam a qualquer tipo de serviço prestado ao Estado e, por consequência, tanto ao serviço militar como ao serviço cívico (“[s]egundo a doutrina desta confissão religiosa, a testemunha de Jeová ‘dedica tempo, energia e vida exclusivamente ao serviço de Deus omnipotente’ pelo que, ‘se pusesse de lado este dever… para executar qualquer outro trabalho atribuído pelo Estado, violaria o seu pacto aos olhos de Jeová’ e estaria sujeita a ‘sofrer a punição inflingida [sic] aos desertores de Jeová’, de cujo exército faz parte”). De acordo com esta posição, é necessário distinguir as duas objeções (ao serviço militar e ao serviço cívico), na medida em que o direito constitucional à objeção de consciência implica a distinção entre os casos em que o direito é reconhecido e aqueles em que não é – distinção essa que se fará em função do caráter fundamental da mesma, uma vez que “o direito à objecção de consciência decorre da basilar dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição) apenas quando o não reconhecimento do imperativo de consciência implica a violação da integridade moral da pessoa, que a Constituição considera inviolável (artigo 25º, n.º 1)”. Tal como se defende, não se trata, aqui, de um conflito entre a vontade da maioria e a da minoria (que é inerente ao princípio democrático), mas antes da oposição entre o princípio da vontade popular e o da dignidade da pessoa humana, “que se verifica quando a lei democrática entra em conflito com a norma estruturante da integridade moral da pessoa, que se considera ditada pela consciência individual”. Assim, tendo a inviolabilidade da consciência alicerce na inviolabilidade da integridade moral do indivíduo (que não pode ser coagido a uma decisão insuportável para a consciência e que deve determinar, nos limites da ordem jurídica, o exercício da sua liberdade), o objetor ao serviço militar pode ser, igualmente, objetor ao serviço cívico, invocando para ambas as objeções o mesmo fundamento. E, do mesmo modo, ainda que se defenda que a Constituição nega o direito à objeção ao serviço cívico, isso não bole com a objeção de consciência ao serviço militar, pelo que o seu não reconhecimento implicaria uma injustificada diferença de tratamento com outros objetores, com consequências penais de muito relevo. Nesse sentido, recusa-se a posição vencedora de que a obrigação de prestação de serviço cívico é uma alternativa ao cumprimento da obrigação de prestação de serviço militar, mas antes se encara aquela como uma outra obrigação, substitutiva e subsequente ao afastamento desta, pelo que a norma em crise violará, efetivamente, o artigo 41.º, n.º 6, e o artigo 276.º, n.º 4, da CRP.

 

  1. A declaração de voto debruça-se, ainda, sobre a violação do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, que considera existir na medida em que a norma em crise limita o n.º 6 do artigo 41.º da CRP, que, consagrando um direito fundamental, não pode ser restringida senão nas hipóteses constitucionalmente estabelecidas e nos termos fixados por aquele normativo, valendo a referência que aí se faz aos “termos da lei” não como uma reserva de lei, mas como uma consagração de um direito processualmente dependente. Rejeita, assim, o exercício que é feito no acórdão quanto à distinção entre “condicionamento” e “restrição”, julgando não só que estamos perante uma verdadeira restrição (uma vez que diminui o âmbito material do direito em causa), como ainda que todas as limitações a um direito fundamental estão, necessariamente, subordinadas à exigência de justificação constitucional imposta pelo artigo 18.º (conforme posição recorrente do próprio Tribunal Constitucional). Deveria, assim, segundo este entendimento, negar-se a necessidade da declaração imposta pela alínea d) do n.º 3 do artigo 18.º da Lei n.º 7/92, uma vez que ela não é processualmente necessária e configura, em si própria, uma violação da consciência das testemunhas de Jeová, que a têm por insuportável.

 

  1. Por último, o Conselheiro José de Sousa Brito analisa ainda a hipótese de a obrigação de prestação de serviço cívico, imposta ao objetor de serviço militar, violar o direito de objeção de consciência previsto no n.º 6 do artigo 41.º, uma vez que a revisão constitucional de 1982 procedeu à sua generalização. Efetivamente, ao deixar de referir-se, específica e limitadamente, à objeção ao serviço militar e, bem assim, ao deslocar o tratamento desta matéria para o artigo 276.º, poderá discutir-se se legislador constitucional pretendeu operar uma “degradação valorativa da norma”, pois que, em princípio, o n.º 6 do artigo 41.º tem superioridade constitucional em relação ao artigo 276.º, que o restringe. Afasta-se, todavia, na declaração de voto esta interpretação, quer através de elementos históricos, quer comparatísticos, afirmando-se que o artigo 276.º integra o núcleo do regime da objeção de consciência prevista no artigo 41.º, n.º 6, ao mesmo tempo que se sustenta que interpretação distinta seria, ela sim, inconstitucional por violação do n.º 4 do artigo 276.º e do princípio da igualdade: “[o] objector total não é reconhecido pela Constituição, no sentido de que continua sujeito à obrigação substitutiva da prestação do serviço cívico. Mas isto não impede, obviamente, que seja reconhecido, já não como objector total, mas como objector ao serviço militar”. Sublinha-se, ainda, o que nos parece de relevar, que este serviço cívico pode ter formas alternativas de cumprimento, nomeadamente algumas que sejam aceitáveis para objetores totais como as testemunhas de Jeová, desde que ressalvado o princípio da equivalência de duração e penosidade com o serviço militar obrigatório (como sucede, por exemplo, na Alemanha).

 

  1. Em distinta declaração de voto, apresentada pelos Conselheiros Luís Nunes de Almeida e Armindo Ribeiro Mendes, sustenta-se, igualmente, que o direito à objeção de consciência é um direito procedimentalmente dependente, o que, porém, não admite que o procedimento de reconhecimento do respetivo estatuto seja injusto: “[o] que a Constituição seguramente não autoriza é que, sob a capa de um desiderato de natureza organizatória (organização do serviço cívico), o legislador ordinário faça depender a aquisição do estatuto de uma declaração de vontade do candidato de que está disposto a cumprir o serviço cívico alternativo”. Entendem os subscritores que, ao contrário do que defende a tese central do acórdão, não há sinalagma constitucional (entre o reconhecimento da objeção de consciência ao serviço militar e o cumprimento de serviço cívico substitutivo), o que existe, na verdade, é uma consequência do reconhecimento daquele estatuto, cujo incumprimento gerará a sanção respetiva. Defende-se, nessa medida, que a exigência de declaração feita na norma em crise, é um aliud em relação ao texto constitucional, afigurando-se desproporcionada e conduzindo, na realidade, não apenas ao não reconhecimento do objetor total (constitucionalmente sustentado), mas à negação do reconhecimento do objetor ao serviço militar, quando este seja, simultaneamente, objetor ao serviço cívico. Não lhe ser reconhecida esta segunda possibilidade, como não é, não implica nem pode implicar a negação da primeira.

 

  1. De modo idêntico, a declaração de voto da Conselheira Maria da Assunção Esteves recusa a posição que obteve vencimento, por entender que ela inverte o “sentido constitucional das coisas”, uma vez que a obrigação de prestação de serviço cívico só pode existir depois da concessão do estatuto de objetor de consciência (ao serviço militar) e nunca antes. Ao impor a declaração de aceitação de prestação de serviço cívico, a Lei n.º 7/92 está a invadir o espaço que é concedido à liberdade de consciência: “na posição de ter o estatuto de objector se entrecruzam os princípios da liberdade negativa e da dignidade. Essa posição vale com independência da necessidade ulterior de compatibilizar acções, de estabelecer a concordância prática com outros direitos”. Nessa medida, como conclui, a intervenção legislativa que estabelece o procedimento para obtenção do estatuto de objetor de consciência ao serviço militar só pode requerer a comprovação da sinceridade das convicções, da motivação pela consciência, pois que só isso pode ser permitido pelo princípio da liberdade de consciência tal como a CRP o consagra – para lá disso, como ocorre na norma da alínea d) do n.º 3 do artigo 18.º daquela lei, estamos perante uma afetação intensa na esfera privada.

 

  1. Em conclusão, julgamos ser importante sublinhar, por um lado, a tentativa que o Tribunal fez (no corpo da sua decisão maioritária) de não discutir o fundamento da objeção de consciência, partindo do princípio de que todas as objeções de consciência são idênticas à luz da lei (tentativa de evitar a discussão sobre a discriminação de determinada crença religiosa). Mas, por outro, não pode deixar de notar-se igualmente (como fazem os votos de vencido) que esse tratamento acaba por distinguir e prejudicar, no caso, os cidadãos testemunhas de Jeová (como, eventualmente, outros), na medida em que, como objetores totais, acabam por ver a sua situação prejudicada em comparação com os objetores apenas ao serviço militar.

 

Flávia Noversa Loureiro

 

Citar como: LOUREIRO, Flávia Noversa, “[Anotação a] Tribunal Constitucional, acórdão n.º 681/95, 05.12.1995”, 2021, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/

 

REFERÊNCIAS NA DOUTRINA:

COUTINHO, Francisco Pereira, “Sentido e limites do direito fundamental à objecção de consciência”, Working Paper 6/01, 2001, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, disponível em https://www.fd.unl.pt/Anexos/Downloads/223.pdf

GARCIA, M. Miguez, O Direito Penal Passo a Passo, vol. I, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015.

GOUVEIA, Jorge Bacelar, GOMES, M. Saturnino da Costa, e LOJA, Fernando Soares, Direito da Religião. Textos Fundamentais, Lisboa, INCM, 2015.

MACHADO, Jónatas, “A jurisprudência constitucional portuguesa diante das ameaças à liberdade religiosa”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 82, 2006, pp. 65-134.

 

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