UNIÃO DE FACTO | TRABALHO DOMÉSTICO | ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA | JUÍZO DE EQUIDADE

 

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 1142/11.2TBBCL.1.G1.S1, 14.01.2021

 

JURISDIÇÃO: Cível – Família e Menores

ASSUNTO: Liquidação de valores fixados em ação declarativa

JUIZ RELATOR: João Cura Mariano

DECISÃO: Improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, que inter alia considerara o trabalho doméstico prestado pela Autora como contribuição na aquisição do património do Réu e o ponderara no âmbito de um enriquecimento sem causa.

REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNO:

Código Civil (artigos 402.º, 473.º e ss., 1676.º, n.º 2, 1874.º, 1877.º, 1879.º)

Código de Processo Civil (artigos 371.º, n.º 1, 372.º, n.º 1, 607.º, n.º 4, 662.º, n.º 1, 663.º, n.º 2, 674.º, n.º 3)

Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 3084/07, 06.07.2011

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 3712/15, 24.10.2017

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 219/14, 11.04.2019

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 944/16, 27.06.2019

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 2048/15, 04.07.2019

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 6025/05, 13.04.2010

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 2152/09, 20.03.2014

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 847/06, 27.04.2005

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 1205/05, 31.05.2005

Supremo Tribunal de Justiça, proc. 2140/12, 07.11.2017

REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNACIONAL: n.a.

REFERÊNCIAS DE DIREITO ESTRANGEIRO:

Código del Derecho Foral de Aragón (artigo 310.º)

Código Civil da Catalunha (artigo 234.º)

PALAVRAS-CHAVE: União de facto; trabalho doméstico; enriquecimento sem causa; obrigação natural; juízo de equidade; desproporção na repartição de tarefas; dever de ordem moral ou social; imperativo de justiça; exigência de igualdade; ideia de justiça; prestação de cuidados

COMENTÁRIO:

  1. Atendendo ao número crescente de uniões de facto em Portugal, as problemáticas referentes à cessação da mesma têm ocupado, amiudadamente, os nossos tribunais. O presente acórdão analisa a situação de uma união que, após quase trinta anos de convivência, se dissolve por rutura. Entre outros aspetos, avalia-se a intrincada qualificação e contabilização das tarefas prestadas no lar por um dos conviventes. Pode ler-se no sumário do acórdão que “a prestação do trabalho doméstico, assim como a prestação de cuidados, acompanhamento e educação dos filhos, exclusivamente ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, resulta num verdadeiro empobrecimento deste, e a correspetiva libertação do outro membro da união da realização dessas tarefas, um enriquecimento, uma vez que lhe permite beneficiar do resultado da realização dessas atividades, sem custos ou contributos”. Assim, “[v]erificando-se, nessas situações, um manifesto desequilíbrio na repartição dessas tarefas, não é possível considerar que a realização das mesmas corresponde, respetivamente, a uma obrigação natural e ao cumprimento de um dever. [Não] se fundando esse enriquecimento numa causa legítima, não há motivos para que esse encargo não seja contabilizado nas contribuições que permitiram ao outro membro adquirir património no decurso da relação de união de facto, tendo cessado a causa que o motivou – a existência da união de facto”. O acórdão do STJ – em incidente de liquidação e no seguimento da condenação, já transitada em julgado, do Tribunal da Relação que tinha concluído que a Autora tinha direito a receber o valor equivalente às suas contribuições para a aquisição de diversos bens móveis e imóveis que integram o património do Réu –, decidiu em concordância com o que já tem sido determinado pela nossa jurisprudência e defendido pela doutrina, socorrendo-se do instituto do enriquecimento sem causa. No caso, provou-se que, ao longo de quase trinta anos de convivência, a Autora tratava e cuidava da casa onde ambos viviam e cozinhava as refeições da família. Ademais, ficou igualmente provado que a Autora cuidou do filho de ambos, quer no âmbito familiar, quer acompanhando-o em termos escolares. Estando-se perante um incidente de liquidação (que concretiza uma decisão genérica já proferida), é necessário quantificar a obrigação em causa, tendo também em linha de conta, como esclarece o aresto do STJ, “se os montantes alegados se inserem na obrigação definida pela decisão liquidanda, não se resumindo o julgamento de liquidação a uma mera operação de quantificação”. Na análise da realização do trabalho doméstico, o Tribunal, in casu, afastou o entendimento da obrigação natural pela desproporção verificada, atendendo a que não se tratava de uma colaboração de ambos nestas tarefas, esclarecendo que: ”[s]e esta construção é válida quando a lide doméstica da casa onde ambos vivem e a educação dos filhos é repartida pelos dois parceiros da união de facto em proporções relativamente equilibradas, o mesmo já não sucede quando essas funções são assumidas exclusivamente ou sobretudo por um deles, verificando-se um manifesto desequilíbrio na repartição dessas tarefas. É que, nestas situações de evidente desequilíbrio, não é possível considerar que a prestação do trabalho doméstico e os cuidados, acompanhamento e educação dos filhos correspondem, respetivamente, a uma obrigação natural e ao cumprimento de um dever, existindo uma causa para o enriquecimento resultante da desproporção na repartição de tarefas”. A obrigação diz-se natural quando se funda num mero dever de ordem moral ou social cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um imperativo de justiça (artigo 402.º do Código Civil). É certo que o caráter familiar da vivência em união de facto não se compatibilizará com uma contabilidade organizada dos conviventes, discriminando a participação de cada um nos encargos decorrentes da vida em comum. Daí que a obrigação natural sirva como mecanismo de comedimento, prevenindo uma litigiosidade bagatelar pós-rutura da união, quando exista um contributo comum para a normalidade da vida em conjunto. Porém, como bem explica a decisão em análise, “[a] deteção destas obrigações deverá atender ao que a ideia de justiça, enquanto critério harmonizador de interesses conflituantes, espera num determinado tempo histórico e lugar geográfico. Ora, desde há muito que a exigência de igualdade é inerente à ideia de justiça, pelo que não é possível considerar que a realização da totalidade ou de grande parte do trabalho doméstico de uma casa, onde vive um casal em união de facto, por apenas um dos membros da união de facto, corresponda ao cumprimento de uma obrigação natural, fundada num dever de justiça. Pelo contrário, tal dever reclama uma divisão de tarefas, o mais igualitária possível, sem prejuízo da possibilidade de os membros dessa relação livremente acordarem que um deles não contribua com a prestação de trabalho doméstico, na lógica de uma especialização dos contributos de cada um. O exercício da atividade doméstica, por apenas, ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, resulta num verdadeiro empobrecimento deste, e a correspetiva libertação do outro membro da união da realização dessas tarefas, um enriquecimento, uma vez que lhe permite beneficiar do resultado da realização dessas atividades sem custos ou contributos. É, aliás, a perceção desta realidade que motivou o legislador, na reforma do regime do divórcio, operada pela Lei n.º 61/2008, a estabelecer mecanismos compensatórios das contribuições desproporcionadas para os encargos da vida familiar durante o casamento (artigo 1676.º, n.º 2, do Código Civil), aí se incluindo a realização das tarefas domésticas”.

 

  1. O que parece ser de destacar neste acórdão, que decide no mesmo sentido da anterior jurisprudência, é o papel conferido ao trabalho doméstico e a sua relevância na consideração da contribuição de um dos membros para a aquisição do património do casal ao longo da união de facto. Não se trata de um crédito compensatório como o previsto para os cônjuges no art. 1676.º, que assenta na existência de deveres conjugais, mas na utilização do instituto do enriquecimento sem causa. Existindo uma união de facto entre Autora e Réu, o problema em causa era o de saber se houve enriquecimento injustificado do Réu relativamente aos bens por si adquiridos no decurso da união de facto, com os proventos advindos do exercício da sua atividade profissional, considerando o facto de a Autora sempre ter contribuído para a vida familiar comum com o trabalho prestado no desempenho das tarefas domésticas e no cuidado e educação do filho de ambos.

 

  1. Ao contrário das relações patrimoniais entre os cônjuges e entre estes e terceiros, sujeitas a um regime particular, não há na união de facto um regime de bens, nem têm aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento. Na ausência de regulamentação legal, os membros da união de facto podem regular eles próprios, de acordo com o princípio da autonomia da vontade, os aspetos patrimoniais da sua relação por via contratual, por “contratos de coabitação”. Na ausência de tais contratos, e para a resolução dos problemas patrimoniais da união de facto, afastada a possibilidade de aplicação analógica das normas do casamento, a alternativa é a sujeição da regulação dos efeitos patrimoniais da união de facto ao regime geral. De facto, tem sido tal solução a perfilhada pela doutrina e jurisprudência portuguesas. No acórdão em causa, o problema coloca-se no domínio da contribuição da Autora na aquisição do património pelo Réu e eventuais compensações entre os conviventes pelo trabalho realizado no lar no momento da dissolução da união de facto.

 

  1. Na base do instituto do enriquecimento sem causa encontra-se a ideia de que nenhuma pessoa deve locupletar-se à custa alheia. O objetivo do instituto do enriquecimento sem causa é “apagar a diferença no património do enriquecido”, não interessando “que o empobrecido fique em situação igual, melhor ou pior que aquela em que estaria se não se tivesse dado a deslocação patrimonial que funda a obrigação de restituir” [FRANCISCO PEREIRA COELHO, “O enriquecimento e o dano”, RDES, ano XV, 1968, p. 317, nota 5 e p. 332; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Coimbra, Almedina, 2000, pp. 470 e segs.]. O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que ela revista, numa melhoria da situação patrimonial. Umas vezes tal vantagem traduzir-se-á num aumento do ativo patrimonial, outras numa diminuição do passivo, outras na poupança de despesas (por exemplo, poupando em lavandarias, em restaurantes ou refeições pré-preparadas, em empregadas domésticas, etc. Ocorrerá enriquecimento sem causa quando houver intromissão de direitos ou bens jurídicos alheios e essa intromissão pode adquirir a forma de uso, fruição, consumo, etc. O que importa é a verificação de uma vantagem patrimonial à custa de outrem, uma deslocação patrimonial injustificada que pode tomar diferentes formas [Cf. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, op. cit., p. 440]. A vantagem em que o enriquecimento consiste é encarada do ponto de vista do enriquecimento patrimonial, que traduz a diferença produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efetiva (situação real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não tivesse verificado (situação hipotética). À partida, à vantagem patrimonial obtida por uma pessoa corresponde uma perda sofrida por outra, ou seja, verifica-se um enriquecimento à custa de um empobrecimento. Mas a diminuição suportada pelo empobrecido não tem necessariamente de ser igual à vantagem conseguida pelo enriquecido. Por isso, a compreensão do instituto do enriquecimento sem causa exige que não seja requisito do mesmo o empobrecimento ou sacrifício económico em sentido rigoroso, mas a necessidade de que haja um suporte do enriquecimento por outrem, que se produza um locupletamento à custa alheia. Paralelamente, o enriquecimento e o seu suporte alheio, normalmente traduzido num sacrifício económico, têm de estar relacionados. O artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil, refere “enriquecer à custa de outrem”. Finalmente, para que se constitua uma obrigação de restituir fundada num enriquecimento, não basta que uma pessoa tenha obtido vantagens económicas à custa de outra. É ainda necessário que não exista uma causa jurídica justificativa dessa deslocação patrimonial. Podemos identificar como causa das deslocações patrimoniais o projeto de vida em comum. Cessando a união, sucumbe a causa justificativa. A quantificação da medida do enriquecimento de um, face ao empobrecimento do outro, é uma tarefa de difícil concretização. No caso sub judice, o STJ manteve a decisão recorrida que se socorreu da “equidade para fixar um valor global para as contribuições com a realização das diversas tarefas que entendeu terem enriquecido o Réu, tendo adotado como critério o valor do salário mínimo nacional, multiplicado por 12 meses, durante os anos de vivência em comum, ao qual retirou 1/3 do mesmo, considerando a necessidade de afetação de parte desse valor às despesas da Autora”.

 

  1. Em conclusão, e face aos dados apresentados, não se admitindo a aplicação, por recurso à analogia, das regras do casamento, como vimos supra, os problemas postos pela dissolução da união de facto devem resolver-se por recurso aos meios comuns. Tratando-se da questão da contribuição devida pela Autora na aquisição do património pelo Réu e limitando-se, na realidade, a questão à retribuição à Autora de uma compensação pelo trabalho prestado no lar durante os vários anos em que durou a união de facto, é correta a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa (não ficou provado que o cuidado e educação do filho fosse exclusivamente assegurado pela Autora, pelo que tal não foi ponderado como contribuição da Autora para o enriquecimento do Réu).

Cristina Dias e Rossana Martingo Cruz

 

Citar como: DIAS, Cristina, e CRUZ, Rossana Martingo, “[Anotação ao acórdão do] Supremo Tribunal de Justiça, proc. 1142/11.2TBBCL.1.G1.S1, 14.01.2021”, 2022, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/

 

  1. Este acórdão, ao atribuir efetivamente uma compensação à autora, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, pelo trabalho doméstico com que contribuiu para a economia do casal, permite refletir sobre o valor atribuído ao trabalho de cuidado (no qual se inclui o trabalho doméstico). O trabalho de cuidado contempla, por um lado, o cuidado dos membros da família – particularmente, dos mais vulneráveis, como as crianças, as pessoas idosas e as pessoas com incapacidade ou deficiência – e, por outro lado, o cuidado do espaço que a família habita. O cuidado é uma atividade complexa e multidimensional que comporta dimensões facilmente mercantilizáveis e, consequentemente, externalizáveis (como é o caso da limpeza da casa, a preparação de refeições, a alimentação e o transporte dos membros da família que não se podem alimentar ou fazer transportar de modo independente, o auxílio ao estudo) e outras que radicam de modo imediato na relação de afeto e nos laços de amor que unem os membros da família. O trabalho de cuidado requer a dedicação de tempo à realização das tarefas que o compõem. Acontece que existe uma assinalável dimensão de género no que se refere à realidade do trabalho de cuidado, pelo que a reflexão sobre este aresto não se pode alhear dessa dimensão. Em todo o mundo, sem exceção, são as mulheres quem mais dedica o seu tempo ao trabalho de cuidado (não remunerado). De facto, não só a maior parte do trabalho de cuidado é realizado por mulheres – cerca de 75% em todo o mundo –, como elas dedicam uma fatia significativamente maior do seu tempo a atividades de cuidado (em média, cerca de três vezes mais do que os homens) [cf. jacques charmes, The Unpaid Care Work and the Labour Market: An Analysis of Time Use Data based on the Latest World Compilation of Time-use Surveys, Geneva, International Labour Office, 2019]. Em Portugal, um estudo recente da Fundação Francisco Manuel dos Santos conclui que, “em 75% dos casais em que uma mulher vive com um homem, ela contribui muito mais do que ele para os trabalhos não remunerados que derivam da família que formaram” [cf. Laura Sagnier e Alex Morell (coords.), As Mulheres em Portugal, Hoje: Quem São, o que Pensam e como se Sentem, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019, p. 246]. O tempo é um recurso escasso, pelo que a alocação de tempo a estas atividades de cuidado, sem remuneração, impede as mulheres de participar mais ativamente no mercado de trabalho, o que se repercute na sua remuneração (e explica, em parte, as disparidades salariais entre mulheres e homens). Por outro lado, a não externalização de atividades de cuidado permite à família uma poupança significativa, uma vez que a aquisição dos mesmos serviços no mercado teria um custo significativamente superior e, frequentemente, incomportável para muitos agregados familiares. As razões económicas estão, de resto, entre as principais razões invocadas pelas famílias portuguesas para não recorrer a ajuda remunerada para a realização de tarefas domésticas [cf. Laura Sagnier e Alex Morell (coords.), As Mulheres em Portugal, Hoje…, op. cit., p. 224].

 

  1. O trabalho de cuidado do lar e dos filhos é, entre nós, de modo expresso, um dever dos cônjuges, que se subsume ao dever de “contribuir para os encargos da vida familiar”. Este contributo, quando manifestamente desproporcional, pode ser levado a crédito compensatório (artigo 1676.º, n.os 1 e 2, do Código Civil). Na verdade, o legislador, ao referir-se expressamente – ainda que de modo exemplificativo – aos casos em que alguém renuncia à sua vida profissional para contribuir para os encargos da vida familiar, assim sofrendo prejuízos patrimoniais importantes, tinha em mente o caso paradigmático das mulheres que abdicavam da participação no mercado de trabalho para cuidar da família. Deste modo, o reconhecimento legal do crédito compensatório nestes casos expressa, precisamente, o reconhecimento do empobrecimento que a contribuição manifestamente desproporcional de um dos membros do casal para o trabalho de cuidado sempre implica. Por via jurisprudencial, tem vindo a ser reconhecido o mesmo fenómeno no âmbito da união de facto, com recurso ao instituto do enriquecimento sem causa. Analisando as decisões de instâncias superiores que foram chamadas a apreciar esta questão, é possível confirmar, desde logo, a dimensão de género do fenómeno: o trabalho de cuidado e o respetivo empobrecimento é sempre invocado pela mulher e não pelo homem. Isto impede uma análise de género comparativa quanto ao valor atribuído ao trabalho de cuidado quando realizado pelo homem ou pela mulher.

 

  1. A grande novidade do acórdão em análise foi o facto de efetivamente condenar o enriquecido no pagamento de uma compensação à sua ex-companheira. Com efeito, existiam já decisões anteriores que apontavam o instituto do enriquecimento sem causa como a resposta jurídica para o desequilíbrio verificado na realização das tarefas de cuidado entre os casais unidos de facto. No entanto, até ao acórdão em análise, nenhuma decisão tinha efetivamente concluído pelo direito à compensação nos casos sub iudice, por rejeitar a existência de desproporção nos casos concretos. Contudo, o juízo sobre tal ausência de desproporção está necessariamente condicionado à apreciação do valor do trabalho de cuidado (bem como à avaliação do valor de todas as contribuições para os encargos da vida familiar). Esta é a questão que interessa analisar, sendo possível adiantar já duas conclusões: (1) não existia previamente ao presente acórdão um critério uniforme para o cômputo do valor a atribuir ao enriquecimento sem causa do homem às custas do trabalho de cuidado realizado pela mulher como contributo para os encargos da vida familiar e (2) o critério adotado pelo acórdão em análise revela uma parca valorização do trabalho de cuidado, quer objetivamente, quer em confronto com os critérios aludidos em jurisprudência anterior.

 

  1. Assim, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. 6025/05.2TBSXL.L1.S1, 13.04.2010, verifica-se a total ausência de critério na apreciação das contribuições dos membros do casal para os encargos da vida familiar, uma vez que o Tribunal, sem realizar quaisquer cálculos, limita-se a afirmar a superioridade da contribuição do homem face às tarefas domésticas da mulher, uma vez que aquele era pedreiro: “sempre igualmente se não pode deixar de perder de vista, que, exercendo o R. a profissão de pedreiro, a habitação a que se vem de aludir terá sido, com toda a probabilidade, quiçá certeza, pelo mesmo edificada, ignorando-se se só, se com a ajuda de outros colegas da mesma arte [sendo], por outro lado, igualmente do conhecimento público, que a mão de obra aplicada em qualquer construção constitui um dos fatores que maioritariamente onera o preço final da mesma, pelo que, consequentemente, ter-se-á de concluir, que a contribuição patrimonial do R para a edificação da casa de morada de família sobreleva a prestada pela A. para o mesmo fim”. Não é possível deixar de estranhar tais afirmações que constituem manifestamente saltos lógicos, sobretudo face à ausência de matéria de facto que suporte tais afirmações, uma vez que não se encontrava sequer provado nos autos o facto da construção da habitação pelo Réu. Não é possível deixar de questionar, como hipótese, até que ponto a desvalorização social do trabalho doméstico, não remunerado, não faria já parte das preconceções do Tribunal, contribuindo para este resultado.

 

  1. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. 2152/09.5TBBRG.G1.S1, 20.03.2014, assiste-se a uma evolução da metodologia aplicada, verificando-se um esforço do Tribunal por fundamentar, com recurso a critérios, a equivalência das contribuições de ambos os membros do casal para os encargos da vida familiar. Neste caso, em que o Autor é o homem e a Ré é a mulher, o aresto conclui não existir deslocação patrimonial geradora do enriquecimento da Ré à custa do Autor, uma vez que este beneficiou do trabalho doméstico por ela prestado, argumentando que “[é] sabido, por ser facto do conhecimento geral, e nessa exacta medida dispensado de alegação e de prova (artº 514º CPC), que no contrato de serviço doméstico no nosso país a remuneração da hora de trabalho oscila actualmente entre os 5 e os 7 €, fácil se torna concluir que, tomando por base um horário de três horas diárias em seis dias por semana, a contribuição da ré ao longo dos sete anos da relação mantida com o autor terá muito provavelmente excedido, mesmo em termos absolutos, a do seu companheiro”. Portanto, neste caso, o Tribunal considerou como critério o valor mercantil do trabalho prestado pela Ré para aferir o enriquecimento do Autor, na medida em que seria o valor que este teria despendido se houvesse de contratar tais serviços.

 

  1. No entanto, no caso em análise, o critério adotado pelo Tribunal não foi o mesmo, fixando-se antes o do salário mínimo nacional multiplicado por 12 meses, o que significa uma desvalorização do trabalho de cuidado (e, particularmente, no caso, do trabalho doméstico) face ao entendimento mencionado no ponto precedente. Esta desvalorização é particularmente relevante considerando que se tratou de uma decisão – a primeira – na qual existiu efetivamente a condenação a uma compensação. De notar que o Tribunal não faz uma análise dos critérios anteriormente utilizados em casos semelhantes, nem justifica expressamente a escolha deste critério. No entanto, existe uma passagem do aresto que se afigura relevante notar: “Com efeito, a decisão recorrida, recorreu à equidade para fixar um valor global para as contribuições com a realização das diversas tarefas que entendeu terem enriquecido o Réu, tendo adotado como critério o valor do salário mínimo nacional, multiplicado por 12 meses, durante os anos de vivência em comum, ao qual retirou 1/3 do mesmo, considerando a necessidade de afetação de parte desse valor às despesas da Autora. Tendo em consideração que nessas contribuições está incluído o trabalho desenvolvido pela Autora no estabelecimento comercial ao longo dos referidos anos, sendo que, em alguns desses anos, estamos perante um trabalho qualificado de gestão do estabelecimento, a utilização do valor do salário mínimo nacional por tal desempenho, em acumulação com a realização das tarefas domésticas, revela-se parcimonioso, pelo que a desconsideração da prestação de cuidados e de educação do filho do casal, não justifica, num juízo de equidade, uma diminuição do valor global liquidado pelo acórdão recorrido”. Daqui decorre que o Tribunal mantém o montante compensatório por considerar parcimoniosa a escolha do critério do salário mínimo nacional face ao trabalho qualificado de gestão de estabelecimento que a Autora exerceu, mas não tece qualquer crítica à sua utilização como critério de valor do trabalho doméstico. E isto apesar de o mesmo ser efetivamente valorizado no mercado laboral (especialmente, no mercado informal que é prevalente no setor do trabalho doméstico) acima do valor do salário mínimo nacional [cf. notícia intitulada “Empregada doméstica, trabalho invisível”, Público, 09.06.2010]. Com efeito, existem muitos trabalhos não qualificados que não são remunerados com o salário mínimo nacional, não sendo, por isso, óbvia a razão pela qual foi adotado e sancionado este critério. Não obstante, a adoção de tal critério sinaliza que, apesar de o trabalho de cuidado ser reconhecido como uma importante contribuição para os encargos da vida familiar, suscetível de gerar enriquecimento de quem dele beneficia (e correspetivo empobrecimento de quem o presta), a sua expressão pecuniária – que reflete o valor que lhe é atribuído – ainda não radica, para efeitos compensatórios, em critérios claros que reflitam sobre o valor social e familiar do trabalho de cuidado, potenciando situações de desigualdade e insegurança jurídica entre aqueles que recorrem aos tribunais para obter a justa compensação pelo trabalho de cuidado prestado em prol de um projeto de vida comum que se frustrou.

Miriam Rocha

Citar como: ROCHA, Miriam, “[Anotação ao acórdão do] Supremo Tribunal de Justiça, proc. 1142/11.2TBBCL.1.G1.S1, 14.01.2021”, 2022, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/

 

REFERÊNCIAS NA DOUTRINA: n.a.

Faça download da decisão.

 

 

 

 

Partilhe este comentário