ABSENTISMO ESCOLAR | ETNIA CIGANA | PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE | REFORÇO DAS RELAÇÕES ESCOLA-FAMÍLIA | MEDIADORES

 

 

Tribunal da Relação de Évora, proc. 1674/18.1T8TMR.E1, 09.09.2021

 

JURISDIÇÃO: Cível

ASSUNTO: Processo de promoção e proteção de menores

JUIZ RELATOR: Maria João Sousa e Faro

DECISÃO: Julga procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, que ordenara a medida de acolhimento residencial dos menores, e repristinando a medida de apoio junto dos pais anteriormente vigente, redefinindo-a com o incremento do envolvimento da escola dos menores, em moldes a definir após auscultação da respetiva Direção.

REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNO:

Constituição da República Portuguesa [artigo 67.º, n.º 2, alínea c)]

Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro (artigo 4.º)

Código de Processo Civil (artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, 663.º, n.º 2)

REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNACIONAL:

Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo 9.º, n.º 1)

REFERÊNCIAS DE DIREITO ESTRANGEIRO: n.a.

PALAVRAS-CHAVE: Etnia cigana; reforço das relações entre a escola e a família; mediadores nas escolas; compreensão das raízes e das culturas familiares; meio natural de vida; situação de perigo; absentismo escolar; incapacidade parental; valores fundamentais da vida em comunidade; desenvolvimento da personalidade; comunidade cigana; valores e convicções próprias; agregado familiar de etnia cigana; regras, tradições e princípios culturais próprios; hábito enraizado; história de perseguição e exclusão da comunidade cigana; tentativa de normalização; comportamento padrão; cultura diferente; direito à diferença; direito à identidade cultural; tradições da comunidade cigana; igualdade de oportunidades; diversidade de valores; razões culturais; interesse superior da criança; princípio da proporcionalidade; pandemia; apoio diferenciado em contexto educativo; rotina; cultura; comportamentos desviantes; prevalência da família

COMENTÁRIO:

  1. Este acórdão versa sobre uma questão recorrente na prática dos tribunais portugueses – o absentismo escolar de crianças de etnia cigana –, mas distingue-se da maioria das decisões proferidas ao nível da Relação por atribuir relevância ao enquadramento cultural dos menores, por chamar a atenção para o papel dos mediadores nas escolas e por convocar estudos académicos sobre os problemas de assiduidade dos alunos de etnia cigana, citando diretamente o estudo produzido em 2019 pela Direção-Geral da Educação com o título Promover a Inclusão e o Sucesso Educativo das Comunidades Ciganas – Guião para as Escolas. A factualidade de base tem algumas especificidades não despiciendas – já que os menores tinham bom comportamento na escola e os problemas de assiduidade resultavam em parte da situação de pandemia –, mas consideramos tratar-se de um bom exemplo de como é possível conciliar a atenção a argumentos culturais com a aplicação da lei geral, com vista à promoção da igualdade e da inclusão social.

 

  1. O acórdão foi proferido em recurso de uma decisão que determinara a aplicação a dois irmãos de etnia cigana, R. com 14 e M. com 11 anos de idade, a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, com acompanhamento psicológico e psicopedagógico, pelo prazo de um ano, com revisão da medida no termo do primeiro semestre. A decisão a quo determinara ainda que os menores seriam colocados na mesma casa de acolhimento, que os progenitores e outros familiares seriam autorizados a visitar os menores na casa de acolhimento e que o Centro Distrital de Santarém do Instituto de Segurança Social deveria apresentar informação sobre a viabilidade de os menores realizarem visitas aos progenitores “em meio natural de vida” e sobre o modo como decorrera a integração dos menores na casa de acolhimento. O Tribunal Colegial a quo fora chamado a intervir por não ter sido possível obter o acordo dos progenitores dos menores a respeito da medida de promoção e proteção, em sede de revisão da medida inicialmente fixada de apoio junto da mãe. A medida de acolhimento residencial fora advogada pelo Ministério Público, enquanto a Defensora das crianças advogara a medida de apoio junto dos pais com acompanhamento psicopedagógico. Como sumariado nas alegações de recurso, o Tribunal Colegial a quo considerara existir “uma situação de perigo para os menores, devido ao seu absentismo escolar reiterado, à sua completa ausência de aproveitamento repetido, à sua não apetência pela formação e educação e desconsideração destas, à ausência de regras parentais adequadas para cumprirem os deveres escolares e à incapacidade parental em alterar positivamente o rumo de vida dos filhos e em proporcionar-lhes um conjunto de regras que lhes permitam interiorizar a necessidade de modificarem as suas condutas atinentes ao percurso escolar em ordem a cumprirem a sua necessidade de educação e formação”.

 

  1. As alegações de recurso defenderam a aplicação de uma medida alternativa em meio natural de vida, nomeadamente, a medida de apoio junto de outro familiar, apresentando, em seu apoio, os seguintes argumentos principais: (i) a intervenção do Estado para promoção dos direitos das crianças tem caráter excecional e só pode interferir na vida das crianças e da sua família na medida do que for estritamente necessário; (ii) os menores estão bem integrados na escola, na comunidade e na sua família, não existindo qualquer sinalização por delinquência ou comportamentos desviantes; (iii) apesar de não terem “grande aproveitamento”, os menores vão frequentando a escola e adquirindo alguns conhecimentos, verificando-se um esforço da sua parte e da parte dos seus progenitores em manter a frequência da escola; (iv) os menores têm a “particularidade” de serem de etnia cigana, o que é determinante para a sua vida e modo de pensar; (v) a comunidade cigana tem regras, tradições e princípios culturais próprios, diferentes dos da comunidade em geral, que devem ser especialmente considerados no caso em apreço; (vi) a comunidade cigana desvaloriza a frequência da escola, que não é um hábito enraizado nesta comunidade, o que se deve em grande parte à sua história de perseguição e de exclusão; (vii) a tentativa de “normalização” das crianças ciganas, ao “impor-lhes um comportamento padrão e uma cultura diferente da sua”, desrespeita o seu direito à diferença e o seu direito à identidade cultural; (viii) a situação sub judice não se relaciona com quaisquer fatores de risco, mas antes com a “diversidade de valores que é própria da origem do seu agregado familiar e da comunidade onde estão integrados e cujas tradições seguem”; (ix) mesmo admitindo a existência de uma situação de perigo, a medida adotada não respeita os princípios orientadores da intervenção estatal (interesse superior da criança, proporcionalidade e atualidade, prevalência da família), segundo os quais as medidas que provoquem o afastamento da família devem ser o último recurso, já que não foi sequer admitida a possibilidade de adotar uma medida de apoio junto de outro familiar, como os avós maternos ou os avós paternos; (x) ao provocar a “revolta, tristeza e angústia dos menores”, a decisão recorrida conduziria ao desenraizamento dos menores, afetando a sua estabilidade emocional e potenciando comportamentos desviantes.

 

  1. O recurso só incide sobre a “(in)justeza da medida de acolhimento residencial aplicada aos menores”, não sobre o teor da decisão de facto. Entre os factos dados como provados, que o Tribunal da Relação de Évora elenca no início da fundamentação, cumpre sublinhar os seguintes: (i) no ano letivo 2020/2021, os menores estiveram matriculados no 1.º ano de escolaridade; (ii) os menores têm falta de interesse e empenho nas atividades escolares; (iii) os menores têm apoio diferenciado em contexto educativo, ainda que este não seja contínuo nem profícuo por a assiduidade e a pontualidade dos menores serem irregulares; (iv) os menores apresentam boa interação com os pares, professores e pessoal não docente; (v) os progenitores dos menores não valorizam a frequência escolar nem consideram que o absentismo dos menores seja um problema, não sabem qual o conteúdo dos deveres escolares nem quantas faltas os menores deram; (vi) durante a pandemia de COVID-19, a mãe e encarregada de educação dos menores deslocou-se regularmente à escola para levantar fichas escolares para os filhos; (vii) nos anos letivos anteriores, os menores ficaram retidos por número excessivo de faltas às aulas, mas, no ano letivo de 2020/2021, a menor M transita de ano, por ter realizado com êxito o plano de recuperação proposto pela escola; (viii) todos os membros do agregado familiar dos menores se sentem integrados na etnia cigana e mantêm rotinas quotidianas inalteradas; (ix) o menor R. opôs-se a ser acolhido em casa de acolhimento residencial e manifestou-se, juntamente com a irmã, triste com essa possibilidade; (x) existe relação afetiva mútua entre os progenitores e os menores, bem como entre os dois irmãos; (xi) os progenitores têm antecedentes criminais; (xii) a mãe dos menores padece de doença e foi sujeita a internamento hospitalar em várias ocasiões.

 

  1. Na apreciação do mérito do recurso, o Tribunal da Relação de Évora começa logo por afirmar a sua “convicção de que a medida aplicada se revela de uma extrema violência” para os menores, por os separar da sua família e da sua comunidade, fazendo-os sentir-se “sancionados por uma conduta – o absentismo escolar – que na sua cultura não é perniciosa”. O Tribunal manifesta, em contrapartida, as suas dúvidas de que o acolhimento residencial tenha, para os menores, “o condão de os cativar para a escolaridade…”. A este respeito, o Tribunal observa que “[s]ão muitos os estudos publicados sobre os problemas de assiduidade dos alunos de etnia cigana” e que, de um modo geral, o que estes estudos advogam para mitigar aqueles problemas é o “reforço das relações entre a escola e a família, o que se consegue sobretudo com a existência de mediadores nas escolas, tendo em vista a sensibilização e envolvimento desta comunidade na aprendizagem dos seus educandos”. O Tribunal não identifica nenhum estudo académico preciso [as alegações de recurso haviam citado o estudo de MARIA JOSÉ CASA-NOVA, “A escolarização de crianças e jovens ciganos: entre a inclusão-excludente e a integração subordinada”, in AAVV, Intervenção em Sede de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens, Lisboa, CEJ, 2015, pp. 69-109], fazendo apenas referência explícita ao Guião produzido pela Direção-Geral da Educação, mas resulta claro que o Tribunal teve o cuidado de consultar estudos sobre a matéria e que teve em conta as recomendações feitas nesses estudos ao apreciar o caso sub judice, o que não é muito comum na prática judicial portuguesa. Também pouco comum – sobretudo entre os tribunais superiores – é o reconhecimento explícito que o Tribunal faz da importância de compreender as raízes e culturas familiares das crianças e dos jovens antes de qualquer intervenção tendente a promover a sua educação, apresentada como correlato da imposição constitucional de cooperação do Estado com os pais na educação dos filhos [artigo 67.º, n.º 2, alínea c), da CRP]. O Tribunal não nega a necessidade de promover a educação dos menores – diz, aliás, que esta é inquestionável –, mas sublinha que esta tem “inevitavelmente de passar pela interação familiar”, sob pena de se promover a “revolta, tristeza e angústia” dos menores, “potenciando comportamentos desviantes”, desde logo, porque, sendo adolescentes, estes “carecem de compreender as decisões para a elas aderirem”. O Tribunal considera que a conduta da progenitora é desculpável em razão da sua enfermidade e nota que os menores mantêm uma relação afetiva mútua com os pais e entre si, bem como que, no ano letivo 2020/2021, a menor M. transitou de ano. Do quadro normativo aplicável, o Tribunal refere, para além da norma constitucional já mencionada, o artigo 4.º, alíneas e) e h), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, onde estão consagrados os princípios da proporcionalidade e atualidade e da prevalência da família, respetivamente, e o artigo 9.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, onde estes princípios são igualmente consagrados. Atento tudo isto, o Tribunal conclui dever continuar-se a “investir numa medida de promoção que envolva o agregado familiar dos menores e a escola”, pelo que revoga a decisão recorrida – “iníqua e desproporcionada” – repristinando a medida de apoio junto dos pais, a redefinir “em função do desejável incremento do envolvimento da escola dos menores”.

 

  1. O Tribunal vai mais longe do que muitos dos seus congéneres no reconhecimento da importância do enquadramento cultural dos menores para a apreciação das medidas adequadas à promoção da sua escolarização. Cumpre notar, de qualquer modo, que o Tribunal não fala em “direito à diferença”, “direito à identidade cultural” ou “direito a ter a sua própria vida cultural”, nem toca na questão – levantada nas alegações de recurso – da tensão existente entre o respeito por estes direitos e as tentativas de “normalização” das crianças ciganas através do ensino público e da escolaridade mínima obrigatória. O Tribunal é muito claro na afirmação de que a necessidade de promover a educação dos menores é inquestionável. Consegue, em todo o caso, uma conciliação equilibrada entre os interesses e direitos em tensão ao reconhecer a importância de compreender as raízes e a cultura familiar dos menores e ao recomendar um maior envolvimento da escola e a mobilização de mediadores para sensibilizar a comunidade cigana para os benefícios da escolarização das suas crianças e jovens.

 

Patrícia Jerónimo

Nicole Friedrich

 

Citar como: JERÓNIMO, Patrícia, e FRIEDRICH, Nicole, “[Anotação ao acórdão do] Tribunal da Relação de Évora, proc. 1674/18.1T8TMR.E1, 09.09.2021”, 2022, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/.

 

REFERÊNCIAS NA DOUTRINA: n.a.

 

 

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