ENCAMINHAMENTO PARA ADOÇÃO | ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL | ABANDONO ESCOLAR | ETNIA CIGANA | CUIDADOS MÍNIMOS DE HIGIENE

 

 

Tribunal da Relação de Évora, proc. 290/09.3TMFAR.E1, 01.03.2012  

 

JURISDIÇÃO: Cível

ASSUNTO: Ação de promoção e proteção

JUIZ RELATOR: Maria Rosa Barroso

DECISÃO: Julga improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida, que havia aplicado medida de confiança a instituição com vista a futura adoção.

REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNO:

Lei n.º 147/99, de 1 de setembro (artigo 62.º-A)

Código Civil (artigo 1978.º)

Código de Processo Civil (artigos 684.º, n.º 3, 685.º-A, 660.º, n.º 2)

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. 52.08.5TBCMN.G1.S1, 30.06.2011

REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNACIONAL: n.a.

REFERÊNCIAS DE DIREITO ESTRANGEIRO: n.a.

PALAVRAS-CHAVE: Situação de perigo; acolhimento institucional; regime de escolaridade obrigatória; hábitos de reduzida higiene dos ciganos; parâmetros da comunidade branca; barraca de acampamento cigano; família biológica; apátrida; inserção étnico-cultural; abandono escolar; necessidades educativas da criança; higiene pessoal; rendimento social de inserção; vergonha de ser cigano; vacinas; etnia cigana; comunidade cigana; superior interesse da criança; saudável processo de desenvolvimento; marginalizado pelos pares; indivíduo não cigano; falta de autoestima; reunificação familiar; enquadramento familiar substitutivo; vínculos afetivos próprios da filiação; socialização; interiorização de regras; mau trato; discriminado; cuidados mínimos de higiene; família alargada; juízes sociais; prevalência da família

COMENTÁRIO:

  1. Este acórdão aprecia a decisão de aplicar a um menor de 10 anos de idade a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção. Nas alegações de recurso contra a medida de encaminhamento para adoção, a mãe do menor invocara argumentos culturais, notando que os “hábitos de reduzida higiene dos ciganos” estavam a ser medidos pelos “parâmetros da comunidade branca” e que o menor se tornaria “‘apátrida’ em termos de inserção étnico-cultural” se perdesse o contacto com ela. O Tribunal da Relação de Évora desvaloriza estes argumentos, rejeitando liminarmente a ideia de que a falta de hábitos de higiene seja uma característica dos ciganos ou que estes não sejam cuidadosos com os filhos. Nas palavras do Tribunal: “Nem se diga que tem qualquer relevância a etnia cigana quando é sabido a ligação e os cuidados que tal etnia dedica aos filhos”. O Tribunal ressalva que a situação de perigo não é necessariamente culpa dos pais e mostra-se até compreensivo com a mãe do menor, dizendo ser provável que ela própria seja vítima da relação com o pai do menor, um homem de etnia não cigana, residente em parte incerta.

 

  1. O menor havia sido sinalizado, juntamente com um irmão mais velho, por abandono escolar, a que se seguira ação de promoção e proteção com fundamento no facto de os menores não receberem os cuidados adequados à sua situação pessoal e idade. Na sequência de uma primeira tentativa gorada de aplicação consensual da medida de apoio junto da progenitora, fora aplicada ao menor a medida de acolhimento institucional por um ano, prorrogável até à sua maioridade. Ao irmão mais velho não fora aplicada qualquer medida, por este se encontrar a viver com uma tia, já não se encontrar no regime de escolaridade obrigatória e não existir situação de perigo. Ao cabo de um ano de institucionalização, a instituição de acolhimento do menor emitira parecer no sentido de a medida ser revista e aplicada medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, o que fora subsequentemente requerido pelo Ministério Público, com o argumento de que, nem a progenitora, nem outro familiar da criança se apresentavam como alternativa à institucionalização. A aplicação da medida fora decidida em debate judicial com intervenção de juízes sociais.

 

  1. A mãe do menor recorrera da decisão, com o argumento de que a situação de carência económica e social da criança poderia ser minorada pela institucionalização sem a confiança para adoção e sem inibição do poder paternal da mãe, de modo a manter a ligação da criança à família biológica. Segundo a mãe do menor, as condições previstas na lei para o encaminhamento para adoção [artigo 1978.º, n.º 1, alíneas d) e e), do Código Civil] não estavam preenchidas e os “hábitos de reduzida higiene dos ciganos, medida pelos parâmetros da comunidade branca”, bem como as condições de habitação numa barraca de acampamento cigano, não justificavam a adoção da medida. A mãe alegou ainda que a medida não garantia a futura adoção e que a privação de contacto da criança com a mãe deixaria “marcas indeléveis na sua personalidade, tornando-a ‘apátrida’ em termos de inserção étnico-cultural”.

 

  1. Na apreciação do recurso, o Tribunal da Relação de Évora começa por elencar os factos dados por assentes, que incluem, entre outros, os seguintes: (i) o menor não comparecia à escola nem frequentava as aulas e, nas raras ocasiões em que o fazia, não interagia com os colegas, brincando sozinho; (ii) quando comparecia à escola, o menor mostrava-se empenhado, bem comportado e com capacidades cognitivas, dizendo gostar da escola e querer frequentá-la, mas não poder fazê-lo por as suas roupas estarem sujas; (iii) a progenitora não se interessara em assegurar a ida dos filhos à escola, nem em aproveitar as instalações sanitárias e as refeições oferecidas pela Associação Social e Cultural de Almancil; (iv) a barraca onde o agregado familiar habitava não tinha meios de concretização da higiene pessoal das crianças nem espaço próprio para elas; (v) a mãe perdera o benefício do Rendimento Social de Inserção por incumprimento dos deveres decorrentes do plano de inserção; (vi) “o desleixo da mãe era tanto, que nem o abono de família dos filhos levantava”; (vii) o menor era “uma criança frágil e dócil”, que “denota[va] ter vergonha de ser cigano” durante as visitas da mãe à instituição; (viii) o menor ficara “encantado com a sua nova situação” na instituição de acolhimento; (ix) o menor não tinha as vacinas nem as consultas de rotina em dia; (x) o menor “verbalizava na instituição não querer regressar à mãe”; (xi) as visitas da mãe à instituição eram cada vez menos frequentes e a interação entre a mãe e o menor durante as visitas era “extremamente pobre”, quase sem conversa e com nenhum contacto físico ou demonstrações de carinho; (xii) o menor não conhecia o pai e nunca fora bem aceite na comunidade cigana por este não ser de etnia cigana.

 

  1. O Tribunal da Relação de Évora explica que os processos de promoção e proteção não visam resolver a situação da criança em termos definitivos, mas sim afastá-la do perigo em que se encontra. No caso concreto, apesar de decorridos mais de dois anos sobre a institucionalização do menor, “não se logrou afastar o perigo em que a criança se encontrava, em termos de não existir qualquer garantia, caso voltasse para junto da mãe, de não ficar na situação em que antes se encontrava”. Segundo o Tribunal, nem a mãe nem a restante família haviam conseguido apresentar-se como alternativas para o retorno da criança à sua família biológica. O Tribunal reconhece que a “separação da criança da sua família deve ser a última medida a ser tomada” e que o princípio da prevalência da família “deve ser cuidadosamente analisado”, só sendo afastado “quando o superior interesse da criança o impuser”. Neste caso, a situação era “irreversível em relação à reunificação familiar”, já que a mãe não apresentava qualquer projeto para o filho, limitando-se a pretender que este continuasse institucionalizado. O superior interesse da criança exigia, por isso, que se encontrasse um “enquadramento familiar substitutivo”. O menor tinha direito a uma família que o cuidasse e o acompanhasse com as relações próprias da filiação. O Tribunal desvalorizou a probabilidade de a idade do menor dificultar a sua adoção, contrapondo que, caso a adoção viesse a revelar-se inviável, o futuro ditaria qual a melhor solução. O Tribunal não afastou, em todo o caso, a possibilidade de uma futura apreciação da medida, se motivos excecionais e supervenientes, relativos à própria criança e pensando exclusivamente nos seus interesses, o viesse a determinar.

 

  1. Segundo o Tribunal, a mãe do menor mantinha “o mesmo registo de incapacidade/impossibilidade de assegurar um saudável desenvolvimento para o filho (provavelmente sem culpa)”. Apesar de recapitular várias das omissões da mãe (e.g. falta de cuidados básicos de higiene, educação e alimentação, não comparência à escola dos filhos, não levantamento do abono de família), o Tribunal insiste que o encaminhamento para adoção não tem como objetivo “punir ou censurar os pais”, mas apenas garantir a prossecução do superior interesse da criança, que é o critério prioritário a ter em conta na análise da verificação dos requisitos do artigo 1978.º do Código Civil. Noutra passagem, o Tribunal observa que “está em perigo toda a criança que não recebe todos os cuidados e afeição adequados à sua idade e situação pessoal, independentemente da culpa dos pais”, e que as medidas tomadas não são contra os pais, mas a favor das crianças. Observa ainda que não lhe cumpre “culpabilizar a mãe (também ela com grandes carências e limitações)”.

 

  1. O Tribunal conjetura que as carências da mãe sejam, pelo menos em parte, resultantes do facto de esta se ter envolvido com um não cigano e ter tido um filho com ele. “Provavelmente a mãe também é vítima da relação fruto da qual nasceu a criança, isto é, da ligação com homem de etnia não cigana”. Um dos factos dados como provados é o de que o menor nunca foi bem aceite na comunidade cigana. A marginalização do menor dentro da comunidade cigana parece ser a razão pela qual a família alargada não se mostrara disponível para cuidar dele, uma indisponibilidade que o Tribunal assinala como estranha entre pessoas de etnia cigana. “Repare-se que a família alargada também não está disponível para cuidar da criança o que não seria expectável dentro desta etnia”.

 

  1. Apesar de as más condições de habitação, alimentação e higiene serem, por si só, suficientes para a determinação da situação de perigo, o facto de a mãe não levar o filho à escola, quando tinha tempo para o fazer, e o consequente abandono escolar mereceram particular atenção por parte do Tribunal, que vê nesta omissão uma forma objetiva de “mau trato”. “Objectivamente é mau trato permitir que um filho seja discriminado, porque não lhe são assegurados cuidados mínimos de higiene, é mau trato não o levar à escola e fazê-lo sentir pior que os outros e é mau trato não estar com ele e não lutar por o ter de volta, mesmo sem consciência exacta das necessidades da criança”. Sobre a importância da escolarização, o Tribunal observa: “A escola não é só a aquisição de conhecimentos. A escola é o relacionamento com os pares e com os adultos indispensável a um saudável processo de desenvolvimento. A obrigatoriedade de frequência escolar para as crianças afigura-se-nos indiscutível pelos conteúdos formativos de socialização e de interiorização de regras que comporta”.

 

  1. Este acórdão tem o mérito de rejeitar frontalmente estereótipos negativos sobre as pessoas de etnia cigana (falta de higiene, falta de cuidado com os filhos). Ao mesmo tempo, o Tribunal faz algumas generalizações a respeito das pessoas ciganas e da etnia como um todo – grande cuidado com as crianças, habitual envolvimento da família alargada no cuidado dos menores, marginalização das mulheres que se envolvem com não-ciganos e dos filhos dessas relações – sem ser possível perceber se assentam em depoimentos prestados por testemunhas ou peritos, em leituras de trabalhos académicos ou (o mais provável) na experiência de vida dos juízes.

 

Patrícia Jerónimo

 

Citar como: JERÓNIMO, Patrícia, “[Anotação ao acórdão do] Tribunal da Relação de Évora, proc. 290/09.3TMFAR.E1, 01.03.2012”, 2022, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/.

 

REFERÊNCIAS NA DOUTRINA: n.a.

 

 

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