ROUBO | SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA | ETNIA CIGANA | CONDIÇÃO CULTURAL, SOCIAL E ECONÓMICA MUITO DESFAVORECIDA
Tribunal da Relação do Porto, proc. 0842155, 28.05.2008
JURISDIÇÃO: Criminal
ASSUNTO: Crime de roubo; suspensão da execução da pena
JUIZ RELATOR: Isabel Pais Martins
DECISÃO: Negado provimento ao recurso e confirmação da decisão recorrida de não suspender a execução da pena de prisão em que o recorrente se encontrava condenado.
REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNO:
Código de Processo Penal (artigo 371.º-A)
Código Penal (artigos 2.º, n.º 4, 40.º, n.º 1, 50.º)
REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNACIONAL: n.a.
REFERÊNCIAS DE DIREITO ESTRANGEIRO: n.a.
PALAVRAS-CHAVE: Família de etnia cigana; relatório social; venda ambulante; normas e valores da etnia cigana; condutas desviantes; rendimento mínimo garantido; características nómadas; origem e condição pessoal; condição cultural, social e económica muito desfavorecida; meio familiar e social (específicos) envolventes; imaturidade dos arguidos; atitude socialmente perigosa; bom comportamento prisional; audácia criminosa; sentimento jurídico da comunidade; personalidade criminosa muito arrojada; defeito de socialização
COMENTÁRIO:
- Neste acórdão, o Tribunal da Relação do Porto aprecia o recurso interposto por um indivíduo de etnia cigana contra decisão que recusara suspender a aplicação da pena de quatro anos de prisão que lhe fora aplicada pela prática, em coautoria, de um crime de roubo. Grande parte deste acórdão consiste na reprodução da fundamentação de facto e de Direito do acórdão recorrido, que o Tribunal da Relação do Porto confirma, ainda que não acompanhe o coletivo a quo no entendimento de que a ponderação da aplicação retroativa da lei penal mais favorável, no caso de condenações transitadas em julgado, deva ser feita, exclusivamente, à luz dos factos já definitivamente fixados na decisão condenatória transitada. O Tribunal da Relação do Porto não faz qualquer menção à origem étnica do recorrente, limitando-se a afirmar que, com a prática do crime, este manifestara “uma personalidade criminosa muito arrojada” e “um defeito de socialização” que não permitia uma “esperança fundada de que a socialização em liberdade [pudesse] ser lograda”.
- O recorrente, identificado como arguido C., fora condenado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado, numa pena de quatro anos de prisão efetiva e, juntamente com o seu coarguido (arguido B.), requerera a reabertura da audiência para aplicação retroativa do artigo 50.º do Código Penal, na sequência de este ter sido alterado pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, e ter passado a admitir a suspensão da execução de penas de prisão até cinco anos. Realizada a audiência, o coletivo a quo decidiu manter o acórdão primitivo nos seus precisos termos e como efetivas as penas de prisão aplicadas a cada um dos arguidos. Desta decisão, apenas o arguido C. recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo que a pena aplicada fosse suspensa na sua execução. No essencial, as alegações de recurso invocaram a violação do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, por o coletivo não ter considerado dados relevantes favoráveis ao arguido, como o facto de este não ter voltado a delinquir e não ter qualquer registo disciplinar na prisão. Na apreciação que fez do recurso, o Tribunal da Relação do Porto notou que o recorrente não havia indicado ao coletivo a quo quaisquer factos que não tivessem sido ponderados no acórdão primitivo e não havia apresentado nem requerido a produção de quaisquer meios complementares de prova. Como já referido, o Tribunal da Relação do Porto discordou da leitura feita pelo coletivo a quo quanto à possibilidade de serem produzidos e examinados meios suplementares de prova que interessassem à decisão da questão da aplicação da lei penal mais favorável. Segundo o Tribunal, o coletivo a quo podia ter alicerçado a sua decisão de não suspender a execução da pena em factos não contemplados na decisão primitiva, mais precisamente, a “verdadeira situação processual do recorrente à data da nova decisão”, esclarecida através de Certificado de Registo Criminal atualizado, e o facto de a suspensão da execução da pena em que o recorrente fora condenado noutro processo ter sido, entretanto, revogada. Estes “factos novos”, que em nada beneficiariam a pretensão do recorrente, são os únicos que o Tribunal da Relação do Porto considera atendíveis, já que os factos invocados pelo recorrente nas suas alegações de recurso (não ter voltado a delinquir e ter bom comportamento na prisão) são desconsiderados, por serem “inexactos” e “anódinos”, respetivamente.
- A informação cultural figura no texto deste acórdão por intermédio da reprodução da fundamentação de facto e de Direito constante da decisão a quo, que, por sua vez, transcreve largas passagens das decisões proferidas pelas diferentes instâncias no processo primitivo. A identificação do arguido C./recorrente como sendo de etnia cigana resulta do respetivo Relatório Social, onde constava inter alia que era “oriundo de família de etnia cigana”, “nunca teve actividade profissional certa apenas ajudando os pais de forma esporádica na venda ambulante”, “foi objecto de intervenção tutelar por condutas desviantes” e “vivia do rendimento mínimo”. O Relatório Social do co-arguido, também de etnia cigana, indicava inter alia que o “processo educativo foi pautado por normas e valores da etnia cigana” e que nunca frequentara qualquer estabelecimento de ensino “devido às características nómadas da família”. Apesar de os arguidos serem menores de 21 anos à data da prática dos factos, o tribunal de primeira instância no processo primitivo havia rejeitado a aplicação do regime especial para jovens, por não acreditar que daí resultassem vantagens para a sua reinserção social. Estabelecendo uma direta relação causal entre a origem/meio dos arguidos e a prática de crimes, o tribunal observara: “As fragilidades e carências do seu meio, designadamente familiar, sem estruturas capazes nem motivação suficiente, mostram que o atingimento dessa finalidade primordial não se compadece com qualquer afrouxamento da censura e muito menos com hipotético recurso a qualquer outra medida. As próprias condições pessoais, espelhadas nos relatórios sociais, nos antecedentes que já possuem e nos factos em que ora se envolveram, graves e reveladores de personalidade fortemente desviada dos normais padrões de comportamento, mostram que o atingimento das finalidades penais exige punição adulta”. O nexo de causalidade é apresentado em termos ainda mais explícitos nas considerações tecidas pelo mesmo tribunal a propósito da medida concreta da pena. “Os arguidos, portanto, mostram ter personalidade já orientada para a prática de crimes, o que se em parte pode ser explicado pela sua origem e condição cultural, social e económica muito desfavorecida, é intolerável na medida em que os arguidos não só desprezam formas de apoio que a sociedade hoje proporciona a quem as procura como desafiam os valores e instituições”. Noutro passo, o tribunal considerara que o dolo manifestado na forma como fora engendrado e procurado o facto criminoso deveria ser “temperado pelas condições pessoais dos arguidos relativas à formação, educação e meio familiar e social (específicos) envolventes”. Apesar de poder ver-se nestas afirmações uma tentativa por parte do tribunal de compreender ou, pelo menos, enquadrar o comportamento dos arguidos a partir das suas posições de desvantagem, os termos em que o nexo de causalidade é estabelecido são problemáticos, pelo potencial de estigmatização das pessoas de etnia cigana que encerram. Também nos parece ser problemática a alusão à imagem dos ciganos autossegregados e ingratos, sugerida pela referência ao facto de os arguidos desprezarem as “formas de apoio que a sociedade hoje proporciona”, o que o tribunal considerara contribuir para tornar “intolerável” a orientação dos arguidos para a prática de crimes.
Patrícia Jerónimo
Nicole Friedrich
Citar como: JERÓNIMO, Patrícia, e FRIEDRICH, Nicole, “[Anotação ao acórdão do] Tribunal da Relação do Porto, proc. 0842155, 28.05.2008”, 2022, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/.
REFERÊNCIAS NA DOUTRINA: n.a.
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