ABANDONO ESCOLAR | ETNIA CIGANA | TRADIÇÕES | INTEGRAÇÃO SOCIAL NO MEIO DE PERTENÇA

 

 

Juízo de Competência Genérica de Fronteira, proc. 315/16.6T8FTR, 05.01.2017

 

JURISDIÇÃO: Cível

ASSUNTO: Processo de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo

JUIZ: Joana Gomes

DECISÃO: Arquivamento dos autos por se considerar inexistir perigo atual que pusesse em causa a saúde, a segurança, a formação e a educação da menor.

REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNO:

Lei n.º 147/99, de 1 de setembro (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo)

REFERÊNCIAS DE DIREITO INTERNACIONAL: n.a.

REFERÊNCIAS DE DIREITO ESTRANGEIRO: n.a.

PALAVRAS-CHAVE: Fator de risco; perigo atual; escolaridade; etnia cigana; tradições; competências escolares básicas; integração social no meio de pertença; desenvolvimento da personalidade; vida digna; caminhos diversos e igualmente recompensadores; regras sociais

COMENTÁRIO:

  1. A decisão em análise versa sobre o abandono escolar de uma menor de etnia cigana e, apesar de ser muito breve, é interessante pelo facto de o Tribunal ter considerado abertamente o “meio de pertença” da menor, para concluir pela inexistência de um perigo atual para a sua saúde, segurança, formação e educação. A decisão de arquivamento dos autos foi criticada nos meios de comunicação social e provocou um debate nacional a respeito da integração das crianças de etnia cigana, da sua sujeição à ordem jurídica nacional, da escolarização obrigatória e do princípio da igualdade.

 

  1. O processo teve origem em 2016, quando a menor, ao tempo com 15 anos de idade, deixou de frequentar as aulas do 7.º ano de escolaridade em que se encontrava regularmente inscrita. Ainda que esta informação não conste da decisão judicial, sabe-se que o agrupamento de escolas em que a menor estava inscrita alertou a CPCJ e que esta contactou os pais da menor, no sentido de serem eles a promover a assiduidade da sua filha. Segundo reportado na imprensa, os pais não deram o seu consentimento para que a menor voltasse a frequentar a escola, afirmando que a filha tinha atingido a menarca e que pretenderiam assegurar a sua “pureza” [Cf. ANA CRISTINA PEREIRA, “Tribunal aceita abandono escolar de jovem cigana em nome da tradição”, Jornal Público, edição de 5 de setembro de 2019]. A CPCJ deu conhecimento do caso ao Ministério Público, que iniciou o processo de promoção e proteção. No decurso dos autos, o Tribunal ouviu os pais da menor, a menor e a técnica da CPCJ. Findas as diligências, o Ministério Público propôs e o Tribunal determinou o arquivamento dos autos, tendo concluído pela inexistência de perigo atual que justificasse a intervenção judicial.

 

  1. Na fundamentação da decisão de arquivamento, o Tribunal começou por reproduzir o preceito legal onde são enumeradas, ainda que de forma não exaustiva, as situações que devem considerar-se como consubstanciando uma situação de perigo (artigo 3.º, n.º 2, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo). Segundo o Tribunal, o caso sub judice não correspondia a nenhuma das situações elencadas pelo legislador e a menor não se encontrava em perigo, já que (i) não demonstrava motivação para frequentar a escola; (ii) ajudava a mãe nas tarefas domésticas; (iii) sendo de etnia cigana, e em cumprimento das suas tradições, considerava não necessitar de frequentar a escola; (iv) sabia ler e possuía as “competências escolares básicas”, necessárias ao desenvolvimento da sua atividade profissional e à “integração social no meio de pertença”. O Tribunal concluiu, por isso, que inexistia, “de todo em todo, e muito claramente, o perigo atual, assaz necessário para a intervenção judicial neste âmbito de promoção e proteção”.

 

  1. O Tribunal não deixou de reconhecer existir “algum risco” para o futuro profissional da menor, mas deu mais relevância ao facto de, naquele momento da sua vida, a menor não estar minimamente motivada para a continuação da aprendizagem na escola. Num surpreendente aceno ao que podemos considerar uma sensibilidade “relativista”, o Tribunal notou que “o desenvolvimento da personalidade e capacidades dos jovens, atualmente, para o prosseguimento de uma vida digna, adequada às regras sociais e jurídicas, se molda, por vezes, por caminhos diversos e igualmente recompensadores que não simplesmente a frequência da escolaridade até à maioridade, como precisamente sucede neste caso”. Ainda que possamos ter reservas face à aparente facilidade com que o Tribunal aceita a falta de motivação da menor, é apreciável que o Tribunal reconheça que não existe uma única forma de vida digna e que o desenvolvimento da personalidade e das capacidades dos jovens também pode ter lugar fora dos habituais contextos educativos formais.

 

  1. Na ponderação que fez entre o direito da menor à educação e o valor das “tradições” próprias da etnia cigana, o Tribunal parece pender a favor deste último, ao considerar ser suficiente que a menor soubesse ler e possuísse as “competências escolares básicas” necessárias ao desenvolvimento da sua atividade profissional e à “integração social no meio de pertença”. Esta formulação é problemática por parecer assentar na ideia de que as crianças de etnia cigana não necessitam de tantos estudos quanto as demais crianças, por a sua pertença étnica as conduzir quase inevitavelmente a trabalhos domésticos e/ou a setores económicos informais. Apesar de o Tribunal ter estado bem ao observar que o desenvolvimento da personalidade e das capacidades dos jovens pode dar-se por “caminhos diversos e igualmente recompensadores”, já nos parece indefensável a ideia de que, para as crianças ciganas, bastarão as “competências escolares básicas”.

 

  1. Atenta a complexidade do exercício de ponderação levado a cabo pelo Tribunal e a sensibilidade do assunto, entendemos que o Tribunal poderia ter ido mais longe na fundamentação que apresentou. Entre as diversas considerações que poderiam ter ficado registadas, merece relevo particular a nota de que outros regimes de ensino existem – como o ensino doméstico ou à distância – que permitiriam conciliar o dever de cumprir a escolaridade obrigatória com a preocupação dos pais das menores de etnia cigana com o seu recato até ao dia do casamento. Mesmo que fosse considerado que tais possibilidades não justificariam uma medida junto dos pais, sempre seria de ponderar a sua existência e justificar a sua não aplicação ao caso em apreço. Julgamos que uma tal explicação poderia assegurar maior consenso relativamente à decisão – até porque numa situação semelhante, em que um outro Tribunal de 1.ª instância também considerou não existir perigo nem necessidade de aplicação de qualquer medida junto dos pais, o Tribunal da Relação de Lisboa, em recurso, considerou que a criança se encontrava em perigo e ordenou a realização de um trabalho pedagógico junto dos seus pais, assim procurando que regressasse à instituição de ensino e continuasse os seus estudos [vide acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 783/11.2TBBRR.L1-1, de 20.03.2012]. Poderia igualmente ter sido clarificado que o cumprimento da escolaridade obrigatória não asseguraria por si só a tão propalada integração social da menor. Mesmo aceitando que o mais importante para o Tribunal era assegurar a integração da menor no seu “meio de pertença”, teria sido pertinente a referência às dificuldades de integração com que as crianças ciganas se deparam nas escolas comuns, amplamente documentadas na doutrina [cf., entre outros, JEAN-PIERRE LIÈGOIS, Minoria e Escolarização: O Rumo Cigano, Lisboa, Centre de Recherches Tsignes, Secretariado Entreculturas e Ministério da Educação, 2001; MARIA JOÃO LEOTE DE CARVALHO, “Segregação residencial na área metropolitana de Lisboa: a violência da não inclusão pelo olhar das crianças”, in Irene Cortesão et al. (orgs.), Travessias e Travessuras nos Estudos da Criança: Atas do III Simpósio Luso-Brasileiro em Estudos da Criança, s. l., ESEPF, 2016, pp. 993-1008; ARMANDA DE OLIVEIRA MAIA, Integração Escolar e Sucesso Educativo na Perspectiva de uma Comunidade Cigana: Estudo de Caso, Porto, Universidade Portucalense, 2006; LINA SUSANA TRINDADE RODRIGUES MARTINS, Um Olhar sobre o (In)sucesso Escolar na Diversidade Cultural: Estudo de Caso, Porto, Universidade Aberta, 2007]. As explicações dadas para as dificuldades de integração são várias: (i) desfasamento entre a pedagogia utilizada nas escolas e aquela que é utilizada no seio da família; (ii) preconceito e discriminação por parte das outras crianças; (iii) desorientação das crianças ciganas face às aprendizagens escolares teóricas e descontextualizadas. Sabe-se também que, para muitas famílias ciganas, a entrada das crianças na escola representa uma “ruptura com os seus mundos de vida, com os modos de ser cigano” [MARIA DA CONCEIÇÃO SOUSA PEREIRA VENTURA, A Experiência da Criança Cigana no Jardim de Infância, vol. I, Braga, Universidade do Minho, 2004], pelo que a imposição de continuação dos estudos pela menor poderia prejudicar a sua integração no meio a que pertence. Considerações deste tipo poderiam ter evitado a perceção – muito difundida nos meios de comunicação social – de que o Tribunal não prestara atenção às necessidades de integração social da menor.

 

  1. A decisão foi criticada por figuras dos mais variados quadrantes da sociedade portuguesa. Na sua maioria, os críticos mostraram-se descontentes com a ponderação feita pelo Tribunal, que entenderam violar o direito fundamental de acesso à educação, visto como alicerce fundamental para o desenvolvimento das crianças como pessoas e membros da sociedade e para a integração das crianças de etnia cigana. Esta foi a posição assumida por Rosa Monteiro, Secretária de Estado para a Igualdade e Cidadania. O Alto Comissariado para as Migrações, evitando pronunciar-se sobre a situação concreta, posicionou-se em igual sentido a respeito do tema, referindo que o direito à educação “não é compaginável com quaisquer abordagens que relativizem esse princípio à luz de quaisquer interpretações ‘culturais’” [ANA CRISTINA PEREIRA, “Tribunal aceita abandono escolar…”, cit.]. A vereação do PSD na Câmara Municipal de Lisboa afirmou considerar a sentença “além de inconstitucional, absolutamente contrária aos princípios que regem a nossa democracia de promoção de igualdade de oportunidades e de direitos e deveres a todos os cidadãos, independentemente da sua origem, raça, credo ou contexto socioeconómico” e “vem contribuir para a exclusão social e para a perpetuação dos ciclos de pobreza e a falta de mobilidade social e educacional entre gerações de determinados grupos marginalizados” [DIOGO CAMILO e CAMILO RISO, “PSD/Lisboa crítica decisão de tribunal sobre criança cigana”, Sábado, edição de 6 setembro de 2018]. Por seu turno, as organizações que promovem a igualdade de oportunidades e a defesa da etnia cigana, como o Observatório das Comunidades Ciganas e a Letras Nómadas, relembraram que há alternativas ao ensino tradicional, que podem assegurar o direito à educação das crianças de etnia cigana. Referem, a título exemplificativo, o ensino doméstico – lecionado em casa do aluno, por um familiar ou por pessoa que com ele habite com habilitação suficiente – e o ensino individual, ministrado por um professor a um único aluno fora do estabelecimento de ensino, como em centros de explicações [ANA CRISTINA PEREIRA, “Tribunal aceita abandono escolar…”, cit.].

 

Maria João Lourenço

Comentadora convidada, investigadora no JusGov

 

Citar como: LOURENÇO, Maria João, “[Anotação à sentença do] Juízo de Competência Genérica de Fronteira, proc. 315/16.6T8FTR, 05.01.2017”, 2021, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/

 

 

REFERÊNCIAS NA DOUTRINA:

LOURENÇO, Maria João, “A (falta) de preparação dos Tribunais para assegurar a proteção das minorias dentro das minorias: os casos de abandono escolar por crianças de etnia cigana”, in AAVV, Atas das Jornadas Internacionais: Igualdade e responsabilidade nas relações familiares, Braga, EDUM, 2020, pp. 212-224, disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/67783.

 

Faça download da decisão.

 

 

 

 

Partilhe este comentário