SCHOOL DROPOUT | COMPULSORY EDUCATION | ROMA | INTEREST OF THE CHILD | EQUALITY OF OPPORTUNITIES
Lisbon Court of Appeal, proc. 783/11.2TBBRR.L1-1, 20.03.2012
JURISDICTION: Civil
SUBJECT: Child protection
RAPPORTEUR: Afonso Henrique
RULING: Overturn of the lower court ruling and order that the child protection procedure be resumed to enforce the protective measure of support to the parents so that they understand the need to ensure that the child completes compulsory education.
DOMESTIC LAW:
Law on the Protection of Children and Youths at Risk, Law no. 147/99, of 1 September 1999 [Articles 3(1), 4, 35(1)(a)]
Portuguese Constitution (Articles 18, 36, 69)
Law no. 46/86, of 14 October 1986 (Articles 2, 7)
INTERNATIONAL LAW:
Convention on the Rights of the Child (Articles 8, 9, 14, 30)
FOREIGN LAW: n.a.
KEYWORDS: Roma; cultural organisation; Roma ethnicity; menarche; current culture; purity; equality of opportunities; Roma community; culture; social exclusion; cultural tradition; right to one’s identity; cultural life; freedom of thought, conscience and religion; deeply engrained cultural rules and principles; family dynamics; cultural specificities; Roma traditions; community mores; people; cultural reasons; diversity of values; marginal behaviour; fundamental values of community life; origin of the family; cultural roots; sociological realities
COMMENTS:
- Este caso mostra-nos duas abordagens judiciais muito diferentes face à questão do peso a atribuir a argumentos culturais na adjudicação de casos concretos, com um tribunal de primeira instância a mostrar-se deferente para com as razões culturais invocadas pelos pais da menor para justificar o abandono escolar e um tribunal de recurso a considerar inaceitáveis as razões relacionadas com a preservação da pureza da menor e a afirmar que o interesse desta em cumprir a escolaridade obrigatória deve prevalecer sobre a recusa dos pais. Apesar de rejeitar os argumentos culturais invocados pelos pais, o Tribunal da Relação de Lisboa não deixa de reconhecer que o direito à educação coexiste – na lei portuguesa e no Direito internacional dos direitos humanos – com outros direitos que, no caso concreto, se apresentam como de sentido “antagónico”, como são, por exemplo, os direitos à identidade, à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, e a não ser privado do direito de, conjuntamente com os membros do seu grupo, a ter a sua própria vida cultural (consagrados nos artigos 8.º, 14.º e 30.º da Convenção sobre os Direitos da Criança). O Tribunal da Relação não enumera explicitamente estes direitos, mas deduz-se da sequência da exposição que aceita a enumeração feita pelo tribunal court, com cujo enquadramento normativo parece globalmente concordar. Onde o Tribunal da Relação diverge do tribunal court é na conclusão de que a conciliação dos dois interesses da menor – em ter acesso à educação e em viver de acordo com as suas “raízes culturais” – é inteiramente possível e necessária. Afirma o Tribunal: “há que conciliar o interesse da jovem em causa em ter acesso a uma educação igual à dos outros jovens e as suas raízes culturais que a levam a acreditar, bem como à sua família, que, «atingida a menarca, a jovem deve deixar a escola para preservar a sua pureza». [Há] que explicar aos pais da menor que uma coisa [frequência do ensino obrigatório] não exclui a outra [pureza] e que a escolaridade obrigatória visa defender as crianças e os jovens, evitando que entrem prematuramente no mercado de trabalho com prejuízo para o seu normal desenvolvimento psico-social”.
- O processo de promoção e proteção fora instaurado pelo Ministério Público na sequência de a menor, de 14 anos de idade, ter sido sinalizada pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens da sua área de residência por abandono escolar quando frequentava o 8.º ano de escolaridade. Segundo o Ministério Público, a criança encontrava-se “numa situação de perigo ao nível da sua formação escolar e social, a que urg[ia] pôr termo pela tomada de medidas que garant[isse]m a sua educação e inserção escolar”. Instruído o processo, foi proposta uma medida de apoio junto dos pais, com a obrigação de a menor frequentar a escola e concluir a escolaridade. Na conferência com a menor e os seus progenitores, concluiu-se pela impossibilidade de acordo, devido à oposição dos pais da menor, para quem a menor estava obrigada a deixar a escola para preservar a sua pureza. O tribunal court considerou que a menor não se encontrava em situação de perigo que justificasse a intervenção judicial, pelo que determinou o arquivamento dos autos. Entre a matéria de facto dada como provada constam os seguintes elementos: (a) a menor integra um agregado familiar de etnia cigana, que se organiza segundo regras e princípios culturais próprios, fortemente enraizados; e (b) a menor revela adequada integração familiar, mostrando-se os progenitores figuras cuidadoras e protetoras. Destes factos, o tribunal court concluiu que a “recusa da inserção escolar não radica [numa] situação de desproteção ou de incapacidade de contenção por parte dos progenitores, mas insere-se numa diversidade de valores própria da origem do agregado familiar, que não tem comunicação com quaisquer fatores de risco relacionados com a dinâmica familiar”. O tribunal court admitiu que podia considerar-se estar em risco a educação e formação da jovem, mas notou que o “conceito de crianças e jovens em perigo é exigente, não se bastando com a verificação de um risco”, sendo antes exigido “um nível elevado de gravidade” para legitimar a intervenção do Estado na vida das crianças e da sua família, já que esta intervenção deve ter caráter excecional e subordinar-se aos princípios da necessidade e da proporcionalidade. Na ponderação dos interesses em jogo – explicou o tribunal court –, o direito da criança à educação contrapõe-se ao direito dos pais à educação e à manutenção dos filhos e aos direitos garantidos pela Convenção sobre os Direitos da Criança como sejam o direito à identidade, o direito a não ser separado dos seus pais contra a vontade destes, o direito da criança à liberdade de pensamento, de consciência e de religião e o direito a não ser privada do direito de, conjuntamente com os membros do seu grupo, ter a sua própria vida cultural. Feita a ponderação dos interesses em jogo, à luz dos princípios orientadores de intervenção enunciados no artigo 4.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), o tribunal court concluiu: “Atendendo à idade de A – 14 anos de idade – e à vontade manifestada pelos progenitores de a mesma não ser sujeita a qualquer tipo de intervenção e aos princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família, afigura-se-nos que corresponde ao interesse superior da criança a não intervenção”. Em recurso contra esta decisão, o Ministério Público pediu ao Tribunal da Relação de Lisboa que tomasse as medidas necessárias a assegurar que a menor continuaria a frequentar o ensino obrigatório. Entre os argumentos avançados pelo Ministério Público avultam os seguintes: (a) “[p]ertencendo, ou não, a uma etnia, in casu, a cigana, a jovem tem direito à escolaridade, educação e formação, devendo ser-lhe assegurado pelo Estado os diversos graus de ensino, em função das suas capacidades e em igualdade de oportunidades”; (b) “as crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e demais instituições”; (c) “[s]ó a escolaridade, a educação e a formação são respostas aos problemas de exclusão social e pobreza, associadas quase sempre à falta de qualificações profissionais”. O pai da menor contrapôs, por seu turno, que a decisão deveria ser mantida, por não haver perigo para a menor, que era uma rapariga feliz e autónoma, integrada numa família muito unida e muito ligada às tradições ciganas, “sendo de todo impensável para ela ir contra os costumes da mesma, certa da primordial importância que a vida em comunidade tem para o seu povo assim como o respeito pelas suas tradições”. Segundo o pai, a intervenção da LPCJP “levaria a uma instabilidade emocional da menor”, essa sim suscetível de a colocar em perigo. O Tribunal da Relação de Lisboa revogou a decisão recorrida observando que o tribunal court havia considerado que “as razões culturais aduzidas pela menor e respetiva família de etnia cigana se sobrepunham ao imperativo constitucional e do Estado português que obrigam os jovens nacionais a frequentar o ensino até ao terminus da escolaridade obrigatória”.
- Apesar de começar por observar que o “caso vertente não é de fácil solução”, pela necessidade de ponderar direitos conflituantes, o Tribunal é muito claro quanto ao direito que deve prevalecer nessa ponderação. “Entre a recusa dos progenitores relativamente à frequência da escola pela menor, no contexto da sua organização cultural, e o interesse da mesma menor em cumprir (pelo menos) o período de escolaridade obrigatória deve prevalecer este último”. O Tribunal também não hesita em manifestar o seu repúdio pelo argumento cultural-chave invocado pelos pais da menor para justificar o abandono escolar – o da necessidade de preservar a sua pureza. Diz o Tribunal: “As realidades sociológicas não são estáticas e não é aceitável que a justificação para a menor deixar de frequentar o ensino obrigatório seja a preservação da sua «pureza»”. Em todo o caso, o Tribunal não deixa de mostrar sensibilidade perante o facto de a pureza ser importante para os pais da menor, ao sublinhar que este desiderato é compatível com a prossecução do ensino obrigatório e ao fazer da explicação desta compatibilidade o cerne do trabalho pedagógico a exercer junto dos pais no quadro da medida de promoção e proteção recomendada. Note-se que, ao enunciar a medida de apoio junto dos pais, o Tribunal não refere a obrigação de a menor frequentar a escola e concluir a escolaridade, como fora pedido pelo Ministério Público em primeira instância, mas apenas que a medida de apoio se traduzirá num trabalho pedagógico para que os pais da menor compreendam a necessidade de esta concluir a escolaridade obrigatória.
- It is interesting to see the way in which both courts incorporate in their decisions the cultural information brought to the case by the Social Report and by the statements made by the child’s parents. There is no indication in the judgment that either court relied on expert witnesses or other sources to ascertain the value of the cultural claims made by the parents. Both courts take as established facts that (a) the child and her family are of Roma ethnicity; (b) the Roma are organized according to their own cultural rules and principles, deeply engrained; (c) the refusal to integrate at school is a result of the diversity of values that are particular to the ethnic origin of the family; and (d) Roma values include the provision that girls must drop out of school after reaching menarche in order to preserve their purity. The distinctive character of the Roma ethnicity as a community/people is taken as a given by both courts, even though the Lisbon Court of Appeal prefers to note that sociological realities are not static and that it is possible to conduct pedagogical work with the Roma community so that they value school.
Patrícia Jerónimo
Citar como: JERÓNIMO, Patrícia, “[Anotação ao acórdão do] Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 783/11.2TBBRR.L1-1, 20.03.2012”, 2020, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/
REFERENCES IN THE LITERATURE: n.a.

