RELIGIOUS ASSOCIATION | CONCORDAT | CANON LAW | SEPARATION BETWEEN CHURCH AND STATE

 

 

              Lisbon Court of Appeal, proc. 27/09.7TBHRT.L1-8, 29.09.2011  

 

JURISDICTION: Civil

SUBJECT: Legal nature and powers of representation on behalf of association of the faithful

RAPPORTEUR: Maria Amélia Ameixoeira

RULING: The appeal is dismissed with confirmation of lower court ruling which had issued an injunction ordering the defendants to refrain from practicing any acts in representation of the association of the faithful and to surrender information and documents to the association’s new legal representatives.

DOMESTIC LAW:

Code of Civil Procedure of 1995, as amended by Decree-Law no. 52/2011, of 13 April 2011 [Articles 21, 65-A, 66, 101, 105(1), 381(1), 387, 655(1), 660(2), 668(1)(c)(d), 685-B]

Law no. 3/99, of 13 January 1999 (Law on the Organisation and Functioning of the Judicial Courts)

Portuguese Constitution [Articles 8(2), 20, 41(4), 46]

Supreme Court judgment, proc. 6824/03.0TBB.G1.S1, 25.02.2010

Supreme Court judgment, proc. 743/08.0TBABT-A.E1.S1, 17.12.2009

Supreme Court judgment, proc. 07S1444, 12.07.2007

Supreme Court judgment, proc. 07B723, 26.04.2007

Supreme Court judgment, proc. 04B4525, 27.01.2005

Supreme Court judgment, proc. 05B116, 17.02.2005

Supreme Court judgment, proc. 072890, 11.07.1985

Lisbon Court of Appeal judgment, proc. 5629/2007-8, 21.06.2007

Coimbra Court of Appeal judgment, proc. 467/08.9TBSRT.C1, 16.06.2009

Constitutional Court judgment no. 118/85

Constitutional Court judgment no. 409/87

Constitutional Court judgment no. 218/88

INTERNATIONAL LAW:

Concordat between the Holy See and the Portuguese Republic, of 18 May 2004

Concordat between the Holy See and the Portuguese Republic, of 7 May 1940

CANON LAW:

Code of Canon Law (1983)

Code of Canon Law (1917)

General Regulation of the Religious Associations of the Faithful, of 23 May 1937

Decree of the Portuguese Episcopal Conference, of 4 April 2008

FOREIGN LAW: n.a.

KEYWORDS: Religious association; Concordat; Catholic Church; association of the faithful; Diocese; canonically; Bishop; religious ends; religious community; Canon Law; Canon Legal Order; ecclesiastic authority; chapels; religious life; works of mercy; evangelisation of the poor; Church’s social doctrine; ecclesiastic assets; Ecclesiastic Decree; canonical-concordatary legal entity; Bishop’s decrees; principle of separation between Church and State; jurisdiction on ecclesiastic matters; Ecclesiastic Court; Jesus Christ; charity works; individual sanctification; evangelic precepts and advice; Church norms; religious names; Slaves of the Sacred Heart of Jesus; religious worship; prayer; penance; Eucharistic celebration; Holy Sacrament; religious activity; goals of the Church; Mother Superior; Fátima Sanctuary; spiritual assistant; Prelate; Bishop’s confirmation; Religious Institute; apostolate; Priest; Vicar General; Diocesan Prelate; Holy See; Jesus in the Blessed Sacrament; Pious Union; Church’s mission; canon; Christian doctrine; public worship; Evangelic principles; rules of the Holy Church; Santa Casa da Misericórdia; charitable purposes; non-confessionality of the State; non-interference of the State in the organisation of the Churches; Holy Gospel

COMMENTS:

  1. Este é um dos muitos casos que os tribunais portugueses têm sido chamados a apreciar sobre a aplicação do regime concordatário e a delimitação do âmbito de aplicação do Direito Canónico e do Direito Civil. Ilustra bem o pluralismo jurídico resultante da coexistência entre a ordem jurídica estadual e “ordens jurídicas minoritárias” – para usarmos a expressão de MALEIHA MALIK, Minority Legal Orders in the UK: Minorities, Pluralism and the Law, Londres, The British Academy, 2012 – dotadas de quadros normativos e de jurisdições próprios. Permite também observar de que modo os tribunais conciliam este pluralismo jurídico com os princípios da Democracia e do Estado de Direito inscritos na Constituição da República Portuguesa.

 

  1. At stake in this instance was an injunction requested by a Diocese (A) and an association of the faithful (B) against a Sister (D), who had been Mother Superior and representative of the association, and her nephew (C). D and C were order to refrain from practicing any acts in representation of the association and to surrender to the association’s new legal representatives inventories of assets, obligations, sources of income, etc. The injunction was issued and later confirmed by the court of first instance, which dismissed the defendants’ objections. On appeal against this decision, D and C alleged mainly that B was a private association of the faithful and that, for this reason, the Bishop had no power to appoint commissioners to replace D nor to practice any acts for the management of the association’s assets. D and C asked for the overruling of the lower court decision, with the acknowledgment that B was a private association of the faithful and that D was her sole legal representative. The appeal was dismissed by the Lisbon Court of Appeal, which concluded that B was a public association of the faithful, under the tutelage of the ecclesiastic authorities. The Court did not find that the appeal had been an act contrary to public order, as had been claimed by the Diocese and the association, but it agreed with them in concluding that the lower court had made a correct interpretation of the relevant provisions in the Code of Civil Procedure, the Law on the Organisation and Functioning of the Judicial Courts, the Portuguese Constitution, the Code of Canon Law, and the Concordat between the Holy See and the Portuguese Republic.

 

  1. A questão central sub judice era a de saber qual a natureza jurídica (pública ou privada) da associação de fiéis. Apesar de fazer alusão a divergências jurisprudenciais e doutrinárias sobre a matéria, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou não haver dúvidas quanto à natureza pública da associação B, o que justificou com base nos seguintes argumentos: (a) a associação foi ereta canonicamente por decreto bispal; (b) a associação sempre prosseguiu fins religiosos, “proclamados nos seus Estatutos e vividos pelas irmãs que faziam e fazem parte dessa comunidade religiosa, em obediência aos princípios evangélicos de castidade, pobreza e obediência à Igreja”; (c) o Código de Direito Canónico de 1917, em vigor aquando da ereção da associação, só previa associações públicas de fiéis; (d) a Diocese que tutela a associação sempre a considerou uma associação pública de fiéis, exercendo sobre ela a sua autoridade; (e) as Irmãs que integram a associação sempre se relacionaram com as autoridades eclesiásticas no reconhecimento da autoridade e direção do Bispo e no cumprimento das normas de Direito Canónico aplicáveis às associações públicas de fiéis; (f) a dependência da associação à Diocese, que “fez sempre parte da vivência de ambas”, é exclusiva das associações públicas de fiéis; (g) a associação sempre respeitou os preceitos canónicos relativos à eleição dos seus representantes (salvo na última eleição, de 2008) e sempre se submeteu à jurisdição canónica, quer no aspeto religioso, quer no tocante aos aspetos temporais; (h) a recorrente D, quando era representante da associação, solicitou ao Bispo a emissão de documento que reconhecesse a associação como instituição religiosa de utilidade pública, com vista a obter uma isenção fiscal que a Concordata de 1940 só admitia para bens e entidades eclesiásticos. Porque se trata de uma associação pública de fiéis, B está sujeita à autoridade e direção do Bispo, “que, em circunstâncias especiais, poderá intervir na sua vida e organização interna, designando – como fez – comissário que em seu nome [a] dirija temporariamente”. Apesar de reconhecer que este tipo de intervenção dos Bispos não está sujeita à apreciação dos tribunais comuns, o Tribunal da Relação de Lisboa não hesitou em afirmar que “jamais se poderia deixar de considerar como válido” o decreto bispal que nomeara comissários para substituir D na direção e representação da associação, por entender que “a intervenção Bispal [fora] feita com base em motivos graves e ponderosos”, ou seja, não fora apenas legítima, como também “fundamentada e necessária”. Também por isso, o Tribunal concluiu que os atos praticados pelos comissários em representação da associação ao abrigo dos decretos bispais que os nomearam eram válidos e haviam produzido os seus efeitos na ordem jurídica. Daí que tanto o tribunal court como este Tribunal tenham reconhecido que a associação era representada pelos dois comissários e não por D.

 

  1. Na apreciação do caso, o Tribunal usou um grande volume de informação subsumível à categoria de “informação cultural”, ainda que a caracterização da comunidade de fiéis, das suas normas e práticas, possa também considerar-se “informação jurídica”, na medida em que estas resultam em larga medida de disposições de Direito Canónico. O Tribunal mostra confiar plenamente na informação prestada pela Diocese e pela associação, aderindo ao teor das suas contra-alegações e do parecer por estas junto ao processo, da autoria do canonista Saturnino da Costa Gomes, frequentemente citado ipsis verbis. De particular interesse são os dados aduzidos em demonstração dos fins religiosos prosseguidos pela associação: (a) o pedido de ereção e reconhecimento da associação foi feito pelo Bispo com a recomendação de que “se trata de pessoas sérias e que desejam realmente entregar-se ao serviço de Deus e das almas” [passagem citada pelo acórdão e incluída no sumário preparado pela juíza relatora]; (b) o pedido de “autorização para a permanência de Jesus Sacramentado na Capela das irmãs em Aljustrel, [que, segundo o parecer,] «demonstra também a ligação intrínseca da Pia União à missão da Igreja»”; (c) as cartas onde são reiterados os votos de pobreza – “nada podemos possuir”, “tudo passará para a Diocese de Leiria” – e de obediência – “O nosso espírito é descer para nos elevarmos até Ele – ó Senhor; mas acatamos as ordens de quem nos pretende dar aprovação” [citações diretas reproduzidas pelo acórdão]; (d) os Estatutos da associação, onde se estabelece que as “«Escravas do Divino Coração de Jesus» é o nome de família das Senhoras que, por sua livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos pobres, em todas as obras de Caridade” e ainda que a associação é “uma comunidade religiosa cujo fim é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e Normas da Igreja; e, em segundo lugar, a evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das Obras da Misericórdia”; (e) os documentos onde se atesta que “as «Escravas» faziam parte dessa Comunidade chamavam-se e eram chamadas como Irmãs e tinham todas elas nomes religiosos”; (f) o facto de as Irmãs terem, em suas casas, capelas com o Santíssimo Sacramento, “para o exercício do culto religioso, da oração, penitência e celebração eucarística”, e de essa atividade religiosa ter sido “proclamada e depois vivenciada pelas Irmãs «Escravas» ao longo dos tempos, sempre na submissão e prossecução dos fins da Igreja”. O Tribunal da Relação de Lisboa não hesitou mesmo em afirmar que a prossecução daqueles fins, o modo de vida em comunidade e a atividade das Irmãs eram “manifestamente religiosos”, acrescentando – num mimetismo de linguagem digno de nota – “[a] sua vida era meramente instrumental (esconde-te) da obra divina da Igreja e dos fins religiosos que assim prosseguiam no espírito do Santo Evangelho”.

 

  1. É interessante notar que, nesta decisão, o pluralismo jurídico não parece oferecer qualquer dificuldade. O Tribunal afirma mesmo que o direito de acesso aos tribunais “não implica que tenha necessariamente de ser atribuída aos tribunais portugueses jurisdição e competência para a dirimição de todos os litígios, mesmo daqueles que tenham conexão com outros ordenamentos”. Esta abertura à coexistência do ordenamento jurídico estadual com outros ordenamentos dotados dos seus próprios tribunais é, no entanto, justificada dentro de apertados limites, que tornam muito improvável um seu alargamento às “ordens jurídicas minoritárias” que protagonizam os debates sobre pluralismo jurídico na Europa (i.e. os Bet Din judaicos e os muito polémicos Conselhos da Xária islâmicos). Apesar de o princípio da separação entre as Igrejas e o Estado e a liberdade das Igrejas na sua organização e no exercício das suas funções (consagrados pelo artigo 41.º, n.º 4, da CRP) serem invocados para justificar a falta de competência dos tribunais comuns, o reconhecimento do ordenamento jurídico canónico resulta sobretudo da assinatura pelo Estado português, “no exercício de um direito soberano”, de duas Concordatas com a Santa Sé, em 1940 e em 2004. Como explica o Tribunal, as Concordatas estão compreendidas no conceito de convenção internacional, pelo que “vigoram na ordem interna com primazia sobre o Direito interno”. Nos termos da Concordata de 2004, Portugal reconhece à Igreja Católica jurisdição em matéria eclesiástica e o direito de aprovar e publicar livremente qualquer disposição relativa à atividade da Igreja. “O que significa que o Estado reconhece [à] Igreja Católica o direito de aplicar o Direito Canónico, quanto à organização das entidades com personalidade jurídica canónica, através de jurisdição ou órgãos jurisdicionais próprios”. Assim sendo, no caso concreto, independentemente de a associação de fiéis ser pública ou privada, a apreciação da validade do decreto bispal que nomeou comissários para a dirigir e representar em substituição de D é uma matéria que cabe em exclusivo aos tribunais eclesiásticos e está vedada aos tribunais comuns, “porquanto é o próprio Estado Português que reconhece e aceita essa mesma jurisdição específica”. Daí também que não resulte daqui “qualquer violação dos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático”. A validade do decreto bispal “é intocável” na jurisdição do Direito português e, consequentemente, os atos praticados por força do decreto não podem ser impugnados na jurisdição civil e pelos tribunais comuns. Os tribunais comuns têm, em todo o caso, competência para julgar os atos praticados ou atinentes às associações canónico-concordatárias quando se trate da aplicação do Direito interno (uma inovação da Concordata de 2004 face à de 1940, que reconhecia a competência das autoridades eclesiásticas para a aplicação do Direito interno). O tribunal court não se absteve de apreciar a questão da natureza jurídica da associação de fiéis, nem de apreciar a “representatividade” da associação, o que – segundo o Tribunal da Relação – não está fora da competência dos tribunais judiciais, pois destinou-se apenas a determinar quem detinha poderes de representação legal da associação nos autos. A delimitação feita pelo tribunal court do âmbito de aplicação do Direito Canónico e do Direito Civil foi considerada correta pelo Tribunal da Relação. Como referido supra, este Tribunal não se coibiu, em todo o caso, de observar que a intervenção da autoridade eclesiástica fora legítima, fundamentada e necessária.

Patrícia Jerónimo

Citar como: JERÓNIMO, Patrícia, “[Anotação ao acórdão do] Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 27/09.7TBHRT.L1-8, 29.09.2011”, 2020, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/

REFERENCES IN THE LITERATURE: n.a.

 

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