FOREIGN JUDGMENT REVIEW | PRINCIPLE OF EQUALITY OF ARMS | INTERNATIONAL PUBLIC ORDER OF THE PORTUGUESE STATE | ISLAMIC LAW | DIVORCE | TALAQ

 

 

Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 1378/18.YRLSB-7, 19.11.2019

 

JURISDICTION: Civil

SUBJECT: Foreign judgment review

JUIZ RELATOR: Maria Amélia Ribeiro

RULING: Dismissal of the request to review the sworn declaration made before a Notary in Bangladesh and by means of which the applicant had repudiated his wife.

DOMESTIC LAW:

Portuguese Constitution [Articles 8, 36(5), 67 to 70]

Code of Civil Procedure [Articles 980, 1094(1), 1096, 1101]

Civil Code [Articles 22, 371(1), 1671(1), 1672(1), 1675(1), 1676(2), 1682-B, 1683, 1685, 1773(1), 1775(1), 1781]

Decree-Law no. 272/2001, of 13 October 2001 (Article 12)

General Regime of the Civil Custody Procedure

Law no. 5/2017, of 2 March 2017

Supreme Court of Justice judgment, proc. 106/18.0YRCBR.S1, 28.02.2019

Supreme Court of Justice judgment, proc. 828/18.5YRLSB.S1, 09.05.2019

Supreme Court of Justice judgment, proc. 559/18.6YRLSB.S1, 21.03.2019

Lisbon Court of Appeal judgment, proc. 10602/2005-2, 18.10.2007

INTERNATIONAL LAW:

Universal Declaration of Human Rights, 1948 (Article 10)

Declaration of the Rights of the Child, 1959 (Principle 6)

Convention on the Rights of the Child, 1989 (Articles 18, 27)

European Convention on Human Rights, of 1950 (Article 6)

Protocol no. 7 to the European Convention on Human Rights, of 1984 (Article 5)

Protocol no. 12 to the European Convention on Human Rights, 2000 (Article 1)

European Court of Human Rights judgment D.D. v. France, proc. 3/02, 08.11.2005

EUROPEAN UNION LAW:

EU Treaty (Article 6)

EU Charter of Fundamental Rights (Articles 20 to 24)

Council Regulation (EU) no. 1259/2010 of 20 December 2010 implementing enhanced cooperation in the area of the law applicable to divorce and legal separation (Articles 10, 12)

European Court of Justice (First Chamber) judgment, Soha Sahyouni v Raja Mamisch, proc. C-372/16, 20.12.2017

FOREIGN LAW:

Bangladesh Muslim Family Laws Ordinance, 1961

Bangladesh Divorce Act, 1869

Bengal Act no. 1 of 1876

Bangladesh Muslim Marriages and Divorces (Registration) Act, 1974

French Cour de Cassation judgment, 1st Civil Chamber, 18.12.1979

French Cour de Cassation judgment, 1st Civil Chamber, 03.11.1983

French Cour de Cassation judgment, 1st Civil Chamber, 01.06.1994

French Cour de Cassation judgment, 1st Civil Chamber, 31.01.1995

French Cour de Cassation judgments, 1st Civil Chamber, 17.02.2004

Spanish High Court judgment, Civil Division, proc. 1894/1997, 15.07.1997

Spanish High Court judgment, Civil Division, proc. 583/1993, 21.03.2000

Spanish High Court judgment, Civil Division, proc. 3059/1990, 03.04.2001

Spanish High Court judgment, Civil Division, proc. 264/2003, 27.07.2004

KEYWORDS: Foreign judgment review; principles of international public order of the Portuguese State; divorce; Islamic law; Foreign law; Bangladesh; talaq; talak; principle of an adversarial process; principle of equality of arms; Bayen Talaq; translation; Bangladeshi Embassy; religious marriage; Muslim marriage and divorce rules; Muslim Family Law; Muslim religion; Sharia; Surah; Quran; Islamic tradition; divorce by repudiation; repudiated spouse; unilateral declaration of repudiation; divorce-repudiation; Muslim law; repudiation declaration; principle of equality; East Pakistan; West Pakistan; Indian subcontinent; Indian Union; former colony; British Empire; religious factor; Muslim Indians; Hindu; India; secular country; Islamic country; religious norms; Common Law; colonial regime; British India; religious customs; dowry; Muslim women; Divine Law; community of believers; Umma; Hanafi Legal School; orthodox branch of Islam; Sunni; blind obedience to tradition; Muslim population; Muslim Personal Law; Muslim marriages; Kazi; unilateral divorce; Bedai Talak; irrevocable divorce; egalitarian treatment between the spouses; principle of non-discrimination; full and effective equality; Western society; unilateral declaration by the husband; equity in the treatment of the spouses; substantive equality; shared values; value of the family; socialization of children; interests of underage children; general ban on discrimination; principle of equality between spouses

COMMENTS:

  1. The judgment under discussion represents a change in the Portuguese case law regarding the review of foreign judgments that have granted a divorce by repudiation (talaq). It weighed the specificities of the Islamic legal framework for the unilateral dissolution of marriage against the compliance with the adversarial principle and the principle of equality, as stipulated by Article 1096 (e) of the Portuguese Code of Civil Procedure. The Court references its judgment dated 18.10.2007, case no. 10602/2005-2, where it preferred to consider only the breach of the principle of equality in the exception of international public order of the Portuguese State , pursuant to Article 1096 (f) of the Portuguese Code of Civil Procedure, and, unlike here, confirmed the foreign judgment. A view which the Court also took in its judgment dated 07.04.2020, case no. 405/19.3YRLSB-2.

 

  1. O reconhecimento de sentenças estrangeiras oriundas de ordenamentos jurídicos com soluções muito diferentes daquelas vigentes em Portugal tem colocado importantes desafios multiculturais à jurisprudência nacional [cf. PATRÍCIA JERÓNIMO, “Intolerância, integração e acomodação jurídica das minorias islâmicas na Europa: Os desafios postos à prática judicial”, in Paulo Pulido Adragão et al. (eds.), Atas do II Colóquio Luso-Italiano sobre Liberdade Religiosa. A Intolerância Religiosa no Mundo: Estado da Questão, edição digital, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2017, pp. 59-100]. O reconhecimento de sentença estrangeira visa dotar uma decisão estrangeira que forme caso jugado de força executiva perante as autoridades do Estado onde o poder coercivo será exercido. A doutrina identifica três modelos de reconhecimento de sentenças estrangeiras: o sistema do reconhecimento de pleno direito (ipso iure), seguido na Itália e Alemanha, o sistema de exequatur, como o seguido em Portugal, que pressupõe o controlo das condições (processuais ou materiais) da sentença revidenda, e o sistema misto, seguido em França [cf. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, “Regime interno de reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 61, 2, 2001, pp 581 e ss.]. As condições para a confirmação de sentença estrangeira encontram-se previstas no artigo 1096.º do CPC. Para que a sentença estrangeira seja confirmada é necessário que: a) Não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão; b) A sentença tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; c) A sentença provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; d) Não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; e) O Réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; f) A sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

 

  1. Em causa neste aresto encontra-se o reconhecimento de uma decisão estrangeira oriunda de um sistema jurídico de Direito Islâmico, em particular, o reconhecimento da declaração ajuramentada perante Notário, datada de 24.09.2017, no Bangladesh que homologou o divórcio por repúdio (talaq). O facto de, neste caso, se estar perante o pedido de reconhecimento de uma decisão notarial estrangeira de registo do divórcio do requerente no “Livro de Registo de Divórcio pelo Marido conforme as Regras Muçulmanas de Casamento e Divórcio”, nos termos da Lei de Família Muçulmana de 1961, Secção 27 (Muslim Family Law of 1961), não obsta ao uso do meio processual de reconhecimento de sentença estrangeira, uma vez que, com Lima Pinheiro, “por «decisão» entende-se qualquer ato público que, segundo a ordem jurídica do Estado de origem, tenha força de caso julgado” [cf. LUÍS DE LIMA PINHEIRO, “Regime interno de reconhecimento…”, op. cit., pp. 581 e ss.]. O Tribunal identificou a especificidade acrescida da situação factual com que se confrontou, na qual a declaração unilateral do cônjuge marido não é sujeita ao exercício do poder público. O Tribunal identificou a falta de um “facto atestado com base nas perceções da entidade documentadora” com referência ao artigo 371.o, n.o 1 do Código Civil, mas parece ter recusado retirar daqui todas as consequências que levariam ao indeferimento liminar do pedido por ineptidão do meio processual de revisão de sentença estrangeira. Em sentido inverso, o Tribunal preferiu discutir o cumprimento dos demais requisitos do artigo 980.º, alíneas e) e f), respetivamente, em relação ao cumprimento do princípio do contraditório e à preterição da ordem pública internacional do Estado português. A oportunidade habilitaria o Tribunal a discutir no ordenamento jurídico português a medida constitucional de tutela da diferença, neste caso, com referência a diferentes modalidades não-estaduais de resolução de conflitos, o que, infelizmente, não aconteceu.      

 

  1. Especificamente sobre o decretamento do divórcio por repúdio (talaq) no Bangladesh, o acórdão ora anotado refere como, após a independência do Bangladesh, foi adotada uma Constituição (1972) que afirma, expressamente, o princípio da igualdade perante a lei, apesar do peso ainda sentido dos princípios da Sharia. A Lei de Família Muçulmana de 1961 (Muslim Family Law of 1961) tornou obrigatório o registo do casamento, ordenando-se ao Kazi (celebrante do casamento) que, sob cominação legal, comunicasse a celebração do casamento ao Conservador respetivo, para aquele ser registado. Disposições semelhantes foram tomadas pela Lei de Casamentos e Divórcios Muçulmanos de 1974 (Muslim Marriages and Divorces Act, 1974). Segundo o acórdão, a modalidade mais comum de divórcio por iniciativa do cônjuge marido, no Bangladesh, é o denominado Bedai Talak (talaq al-bid’ah, divórcio irrevogável/definitivo). O acórdão dá ainda conta de que, com a introdução da Lei de Família Muçulmana de 1961, na Secção 7, estabeleceu-se que o divórcio concedido pelo marido não produz efeitos até que o marido o tenha comunicado ao presidente da unidade administrativa local (Union Parishad) e tenham decorrido noventa dias após a emissão da dita notificação. Dentro do referido período o marido pode revogar o divórcio. O marido também deve dar uma cópia da referida comunicação à esposa. O Presidente, após receber a comunicação, tentará uma reconciliação que, se for bem sucedida, tornará o divórcio ineficaz, mas não pode impedir o talaqpelo marido.

 

  1. O acórdão comentado realça as especificidades do reconhecimento de sentença estrangeira que tenha decretado o divórcio por repúdio (talaq) no cumprimento de princípios estruturantes da ordem jurídica, em particular do princípio do contraditório e o princípio da igualdade no processo civil, tal como exigido pelo artigo 1096.º, alínea e), do CPC. Ao considerar que o divórcio operou através de um procedimento que “é independente da intervenção da mulher [e] desconsidera a possibilidade de intervenção/defesa por parte desta, pois a requerida não desfrutou de qualquer oportunidade de manifestar oposição à dissolução do casamento”, o Tribunal dá por demonstrada a violação do princípio do contraditório previsto no artigo 980.º, alínea e), ex vi artigo 1096.º, alínea e), ambos do CPC, e, por isso, recusa confirmar a sentença revidenda. Esta é a principal novidade deste aresto, seguindo o exemplo da primeira fase da jurisprudência da Cour de Cassation francesa, que, no entanto, merece mais detida atenção.

 

  1. The autonomous consideration of the compliance with the procedural guarantees foreseen in Article 1096 (e) of the Portuguese Code of Civil Procedure must take place against the backdrop of the constitutional system of fundamental rights protection. In this regard, it is worth considering, in the first place, how the procedural guarantees are always accessory and, as stated in the judgment of the Lisbon Court of Appeal, dated 07.04.220, case no. 405/19.3YRLSB-2, that the dismissal of the review of a foreign judgment that has granted a divorce by repudiation (talaq) based on the breach of procedural guarantees is tantamount to the exclusion of the substantive regime that supports them. However, the consideration of the substantive regime of divorce shall always contemplate the other axiological principles of the domestic constitutional and legal framework, in particular in this case, the need to ensure the stability of the transnational legal exchanges in a context of growing constitutional openness to legal pluralism and the fundamental (constitutional and supra-national) protection of difference.

 

  1. The fundamental right to an effective judicial protection [ex vi Article 20(5) and Article 13 of the Portuguese Constitution] encompasses both a subjective and an objective dimension in the compliance with the principle of separation of powers. As a fundamental right foreseen in Article 20(5) of the Portuguese Constitution, it shall be observed in accordance with the principle of equality set forth by Article 13 of the Portuguese Constitution. Amongst the possible limitations, the principle of legal certainty and security, as a result of the principle of the rule of law (Article 2 of the Portuguese Constitution), intends to prevent by recognising foreign judgments the perpetuation of limping situations in transnational legal relations.

 

  1. This assessment shall always observe the principle of international sovereign equality, which is a general principle of International Law, with jus cogens status, established by Article 2 of the Charter of the United Nations and transposed into the Portuguese legal system by Article 8(2) of the Portuguese Constitution, from which the principle of equivalency in the relations of Comparative Law emerges. In this case, it also justifies the rules governing the review of foreign judgments and the exceptionality of the provision of international public order of the State. This international openness of the State is particularly significant in the Portuguese legal framework, which is historically open to the world, to difference and to multiculturalism, and is established in Article 7 of the Portuguese Constitution.

 

  1. A tutela jurisdicional efetiva em condições de igualdade (artigo 20.º, n.º 5, ex vi artigo 13.º da CRP) tem ainda de ser ponderada face à proteção jusfundamental da diferença com igual guarida constitucional. A proibição de discriminação em função do “território de origem, religião” encontra-se também prevista no artigo 13.º da CRP e é uma das decorrências do princípio da livre conformação da personalidade, construída como um direito de liberdade (freiheitsrecht) a partir do disposto no artigo 26.º da Constituição. Encontra ainda referência internacional, v. g. no artigo 20.º e seguintes da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A discriminação positiva da diferença é uma imposição constitucional que se afasta de uma perspetiva unilateral da igualdade em termos que deveriam ter sido considerados no acórdão agora anotado. Em causa não está saber se as radicais diferenças de facto comparadas no contexto em que se verificam as limitações de igualdade de armas no processo de divórcio por repúdio (talaq) põem em causa o núcleo essencial do direito fundamental de acesso à tutela jurisdicional efetiva tal como se encontra previsto no ordenamento jurídico-constitucional nacional, mas se a eventual preterição dessas garantias justifica a recusa do reconhecimento dos efeitos de sentença estrangeira com prejuízo para certeza e segurança jurídica transacional implicada. A interpretação conforme à Constituição do disposto no artigo 1096.º do CPC não se limita a ponderar apenas o disposto na sua alínea e) isoladamente quanto ao princípio do contraditório, mas antes pondera-o face ao regime de reconhecimento de sentença estrangeira dirigido pelos princípios (também constitucionais) da igualdade internacional soberana, da certeza e segurança jurídica e à tutela jus-fundamental da diferença imposta na Constituição.

 

  1. O Tribunal não deixou também de questionar se esta violação do princípio da igualdade integra a exceção de ordem pública internacional do Estado português ao reconhecimento de sentença estrangeira, previsto no artigo 1096.º, alínea f), do CPC, como vinha sendo admitido pela jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 18.10.2007, no proc. n.º 10602/2005-2, e, mais recentemente, no acórdão de 07.04.2020, no proc. n.º 405/19.3YRLSB-2. No aresto ora comentado, o Tribunal optou por tomar como referência a jurisprudência comparada francesa e os compromissos de Direito Internacional comuns a Portugal e França, cuja Cour de Cassation, a partir de 2004, apontou a violação do princípio da igualdade pelo divórcio por repúdio (talaq) do artigo 6.º da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) e, mais especificamente, do artigo 5.º do Protocolo n.º 7 da CEDH, tendo, por isso, recusado confirmar sentenças estrangeiras de decretamento do divórcio por repúdio (talaq). A exceção de ordem pública internacional do Estado português no reconhecimento de sentença estrangeira é a principal instância de controlo material das sentenças estrangeiras cujo reconhecimento seja requerido, ou melhor do resultado potencial desse reconhecimento, face às exigências de certeza e segurança jurídica do comércio jurídico privado internacional que seriam melhor protegidas pelo reconhecimento automático de sentenças estrangeiras, também melhor cumprindo o princípio da equivalência soberana entre os Estados. A dificuldade de definição material do conceito de ordem pública internacional leva a que a doutrina a caracterize pela sua imprecisão, atualidade e relatividade [cf. RUI MOURA RAMOS, “L’ordre public international en droit portugais”, BFDUC, vol. LXXIV, 1998, pp. 45-62], acentuado com a reforma do CPC de 1995, o que determina que o recurso a esta exceção de ordem pública seja sempre excecional, ponderando casuisticamente as opções em confronto, que apenas podem conduzir à recusa do reconhecimento de sentença estrangeira cujo “resultado” ofenda de forma “manifestamente intolerável” a ordem pública internacional do Estado português.

 

  1. A ordem pública internacional do Estado português integra, por via do artigo 8.º da CRP, um conjunto de compromissos de Direito internacional e europeu que apontam o caminho da proibição de discriminação entre os cônjuges no processo de divórcio. O acórdão ora comentado faz apelo ao artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que, no artigo 20.º, estabelece a igualdade perante a lei, no artigo 21.º, estabelece uma proibição geral de discriminação concretizada, no artigo 22.º, estendida para a discriminação a propósito da diversidade cultural, religiosa e linguística e, no artigo 23.º, para a igualdade entre homens e mulheres que deve ser garantida em todos os domínios. Daqui o Tribunal recorre ao artigo 6.º do Tratado da União Europeia, que aporta à experiência da integração da União Europeia o acervo da CEDH, aqui com especial referência ao Protocolo n.º 12 à Convenção, aprovado em Roma, em 04.11.2000, que estende a interdição geral de discriminação a todos os domínios da atuação estadual – que não apenas ao processo judicial, aqui mais relevante por se estar perante o reconhecimento de uma decisão notarial (não judicial) estrangeira. O Tribunal invoca ainda o Regulamento (UE) n.º 1259/2010 do Conselho, de 20 de dezembro de 2010, apesar de a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, no proc. C-372/16, ter precisamente excluído o divórcio por repúdio (talaq) do seu âmbito de aplicação. Este ato de Direito derivado da União Europeia criou a cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial, cujo artigo 10.o estabelece a preferência pela lei do foro sempre que a lei aplicável não preveja o divórcio ou não conceda a um dos cônjuges igualdade de acesso ao divórcio ou à separação judicial em razão do seu sexo, admitindo também no seu artigo 12.º a exceção de ordem pública internacional da lei do foro para recusar a aplicação da lei da origem.

 

  1. O Tribunal da Relação de Lisboa, neste acórdão, integra também a regulação do poder paternal dos filhos menores entre as preocupações em torno da exceção de ordem pública internacional do Estado português suscitadas pela desigualdade, em particular processual, dos cônjuges no momento do divórcio. O Tribunal refere-se à Declaração Universal dos Direitos da Criança, proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 1386 (XIV), de 20.11.1959; à Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas, em 20.11.1989; ao Protocolo n.º 7 à CEDH, de 22.11.1984; à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo artigo 24.º se refere aos direitos das crianças, para concluir ser essa a razão para que, em Portugal, não seja admitido o divórcio unilateral. Esta é uma perspetiva substantiva do casamento como especial garantia do direito a constituir família da qual se afastou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 18.10.2007, no proc. n.º 10602/2005-2, e da qual se tem afastado a discussão doutrinal acerca da admissibilidade do divórcio unilateral em Portugal. Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao artigo 67.º da CRP, consideram tal solução “constitucionalmente duvidosa”, uma vez que o casamento é objeto de uma garantia constitucional por não constituir uma situação precária e a família fundada no casamento dever ser protegida por lei [cf. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 412]. No mesmo sentido, mas com fundamentos diferentes, apontam Vital Moreira e Gomes Canotilho, que consideram “constitucionalmente questionável” o divórcio por mera vontade unilateral de um dos cônjuges, por alegadamente afetar o núcleo essencial do direito de ambos os cônjuges ao divórcio, bem como da liberdade pessoal e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade [cf. VITAL MOREIRA e GOMES CANOTILHO, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. rev., Coimbra, Coimbra Editora, 2007]. Em sentido contrário tem-se manifestado parte da doutrina mais recente, como Carlos Pamplona Corte-Real e José Silva Pereira, que ensinam “crê-se que o divórcio-fracasso deveria aparentemente depender apenas da vontade e leitura de qualquer um dos cônjuges, cabendo ao juiz um papel mínimo na valoração do caracter inequívoco de ruptura por qualquer um deles desejada” [cf. CARLOS PAMPLONA CORTE-REAL e JOSÉ SILVA PEREIRA, Direito da Família: Tópicos para uma Reflexão Crítica, 2.ª ed. atual., Lisboa, AAFDL, 2011, p. 22]. Em sentido mais radicalmente enfático, Fidélia Proença de Carvalho escreve que “a possibilidade de um dos cônjuges, unilateralmente, e mesmo com a oposição do outro, poder resolver o contrato matrimonial, libertar-se-á o casamento de um dos seus estigmas máximos – a própria noção de perpetuidade” [cf. FIDÉLIA PROENÇA DE CARVALHO, A Filosofia da Ruptura Conjugal, Lisboa, Pedro Ferreira, 2002, pp. 86-87]. O acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, de 18.10.2007, no proc. 10602/2005-2, aponta mesmo a liberdade conformadora do legislador ordinário para definir os requisitos da dissolução do casamento pelo divórcio, nos termos do artigo 36.º, n.º 2, da CRP, às iniciativas legislativas como o projeto de Lei n.º 232/X, apresentado pelo Bloco de Esquerda (Regime jurídico do divórcio a pedido de um dos cônjuges).

 

  1. The issues raised regarding the constitutional admissibility of the unilateral divorce for substantive reasons related to the special constitutional guarantee of marriage as the preferable way to ensure the fundamental right to form a family, pursuant to Article 36 of the Portuguese Constitution, or to the violation of the exercise on equal terms (Article 13 of the Portuguese Constitution) of the fundamental right to develop one’s personality, foreseen in Article 26 of the Portuguese Constitution, by divorcing one’s spouse are clearly different. Therefore, the reference to the need to regulate parental responsibilities as well as the consequences of the dissolution of marriage for the spouses’ assets may be treated separately by the law of the forum if the parties reside there, without limiting the spouses’ personal rights regarding the celebration, maintenance or dissolution of the personal ties arising from their marriage. These facts are sufficiently autonomous to justify the recognition of the foreign judgment that decreed the divorce, as was the case in the judgment of the Lisbon Court of Appeal dated 03.10.2006, case no. 454-2006-7, or, even, the regulation of the exercise of the authority of the State of destination if the children and former spouses come to reside there, without the need to breach the spouses’ right to the recognition of the dissolution of the marriage.

 

  1. A natureza imprecisa e subsidiária do conceito de ordem pública internacional do Estado português desaconselha a sobrevalorização dos argumentos substantivos, legais ou constitucionais, como aqueles expendidos neste caso em torno da admissibilidade no ordenamento jurídico pátrio do casamento unilateral. A preferência pela ponderação material da cláusula de ordem pública internacional do Estado pode abrir a porta ao controlo do que, na verdade, deve ser uma relação cosmopolita plural de Direito comparado, orientado pelo princípio da equivalência. Esta exceção de ordem pública internacional do Estado é a última ratio de controlo material face às exigências de certeza e segurança jurídica impostas pelo comércio jurídico internacional privado do Estado (evitando limping situations), que, se usada primariamente, abre a porta a potenciais excessos substantivos unilaterais na ilusória recusa da importação de implantes étnicos – em causa no reconhecimento de sentença estrangeira está a produção de efeitos num determinado território de uma decisão judicial de divórcio já proferida e não o decretamento do divórcio unilateral pelas autoridades judiciais nacionais, razão pela qual a revisão do CPC passou a fazer referência a um “resultado manifestamente incompatível” com a ordem pública internacional do Estado Português.

 

  1. Além disso, a violação do princípio da igualdade (artigo 13.º CRP) no exercício do direito fundamental a constituir família (artigo 36.º CRP) e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º CRP) é um dos argumentos usados por aqueles que defendem e se opõem ao divórcio unilateral no ordenamento jurídico nacional, pelo que daqui dificilmente se podem retirar conclusões definitivas sobre a ordem pública internacional do Estado português, como bem refere o acórdão do mesmo Tribunal, de 18.10.2007, no proc. n.º 10602/2005-2, pelo menos sem uma adesão parcial a uma das propostas esgrimidas. Considerando que o princípio da igualdade não configura um direito fundamental à igualdade, antes um princípio geral de Direito no exercício de cada um dos direitos fundamentais, cuja vigência não é assegurada na lógica “tudo-ou-nada” das normas, mas antes é observada por “graus”, há diversas limitações admitidas entre as quais se encontra, precisamente, a abertura “cosmopolita” comparada do Estado português, neste caso potenciada pela “jurisprudência multicultural”. Aliás, um elevado grau de abertura supraestadual (internacional e europeia) do Estado português é também uma das marcas genéticas da ordem pública do Estado português, como se pode referir ao pluralismo jurídico admitido na CRP, desde logo, no artigo 8.º sobre a receção do Direito Internacional e Europeu. Não custa incluir entre estas sugestões do pluralismo jurídico, a consideração das fontes de Direito Comparado, com o potencial de desenvolvimento do Direito interno de cada uma das ordens jurídicas envolvidas.

Ricardo Sousa da Cunha

Guest contributor, integrated researcher at JusGov Translated from the Portuguese by Ana Rita Silva

Citar como: CUNHA, Ricardo Sousa da, “[Anotação ao acórdão do] Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 1378/18.YRLSB-7, 19.11.2019”, 2020, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/

 

  1. Este acórdão ilustra bem as dificuldades encontradas pelos juízes portugueses – como pela generalidade dos seus congéneres europeus – no acesso a informação jurídica credível sobre o conteúdo de regras de Direito estrangeiro, especialmente quando este é de fundamento religioso, como são as disposições de Direito do Bangladesh relevantes para a apreciação do caso sub judice [cf. PATRÍCIA JERÓNIMO, “Intolerância, integração e acomodação jurídica das minorias islâmicas na Europa…, op. cit., pp. 90-91]. As dificuldades são, desde logo, evidenciadas na primeira secção do acórdão (relatório), onde é narrada a sequência de pedidos de informação e de esclarecimentos sobre o conteúdo do Direito do Bangladesh, dirigidos pelo Tribunal ao requerente e, a pedido deste, à Embaixada do Bangladesh, que não se mostrou particularmente disponível para ajudar. Note-se que uma das dificuldades referidas se prende com a má qualidade das traduções. “Convidado a fazer prova do direito estrangeiro, o requerente juntou um documento relativo ao registo do requerente no «Livro de Registo de Divórcio pelo Marido conforme as Regras Muçulmanas de Casamento e Divórcio», nos termos da Lei de Família Muçulmana de 1961, Secção 27 (Muslim Family Law of 1961), e respetiva tradução[.] Na sequência do despacho[,] o requerente além de prestar «…esclarecimentos [acerca] da Lei de Divórcio do Bangladesh…» e juntar, novamente, o documento relativo ao registo do divórcio do requerente [e] a respetiva tradução algo melhorada, veio requerer que se oficiasse à Embaixada do Bangladesh no sentido do esclarecimento das dúvidas levantadas por este Tribunal[.] A Embaixada do Bangladesh esclareceu, essencialmente: «…não estar em posição de responder às questões postas…», apenas podendo «…dar a sua visão quanto à autenticidade dos documentos apresentados…» e, caso o Tribunal o desejasse, dar «…a sua opinião baseada nos documentos apresentados…»”. A relatora teve o cuidado de consultar diretamente a legislação do Bangladesh no website da Secção de Assuntos Legislativos e Parlamentares (Legislative and Parliamentary Affairs Division) do Governo do Bangladesh, servindo-se para o efeito de pesquisa previamente feita pelo Gabinete de Documentação e Direito Comparado da Procuradoria-Geral da República portuguesa, como é esclarecido em nota. Na reconstituição da legislação relevante para efeitos de determinação da factualidade dada como provada, a relatora apresenta várias disposições da Muslim Family Laws Ordinance, 1961 e do Divorce Act, 1869, traduzidas para português e acompanhadas (em nota) pela versão original inglesa, com referência para o website onde as disposições foram consultadas. A relatora teve também o cuidado (pouco usual na prática judicial portuguesa e certamente de saudar) de consultar (e referir no acórdão) publicações académicas sobre o estatuto das mulheres muçulmanas no Direito da Família do Bangladesh da autoria de juristas naturais do Bangladesh (Sultana Kamal e Kamrul Hossain). A reconstituição que o Tribunal faz do Direito do Bangladesh suscita algumas dúvidas [para além de inconsistências na designação dos diplomas legais, não é inteiramente claro por que motivo o Tribunal cita diretamente algumas disposições (e.g. secção 8 da Muslim Family Laws Ordinance, 1961) e não outras (e.g. secção 6 do Muslim Marriages and Divorces (Registration) Act, 1974, sobre o registo dos divórcios)] e peca por não incluir referências a jurisprudência (uma omissão de vulto quando o sistema jurídico em causa pertence ao Common Law), mas tem o grande mérito de cotejar uma multiplicidade de fontes e de não se ficar pela habitual referência a publicações académicas de juristas portugueses. O Tribunal faz também uma incursão (nada fácil) pelos meandros da Sharia e do relacionamento desta com a lei estadual do Bangladesh. Apoia-se, para o efeito, em Sultana Kamal e em Suleiman Valy Mamede, este último um autor de referência em matéria de Islão e Direito Muçulmano em Portugal. Lê-se no acórdão: “Acontece que o estatuto legal das mulheres muçulmanas no Bangladesh é definido pelos princípios da Sharia, através da Lei Pessoal Muçulmana, a par da Lei Geral (que abrange a Constituição e alguns Códigos), sendo esta última de carácter secular”. Em nota a esta frase, a relatora acrescenta: “A Sharia é a Lei Islâmica por excelência, a Lei Divina, Revelada, contida no Alcorão, uma vez que a fé está indissoluvelmente ligada à Lei, sendo esta parte integrante daquela. O Direito Muçulmano foi, pois, elaborado a partir da Sharia (o jurista é, ao mesmo tempo, teólogo), sendo o seu objetivo legislar para a Comunidade dos Crentes (Umma). A Escola Jurídica Hanafita é uma das quatro Escolas do ramo ortodoxo do Islão, ou seja, o Sunita, tendo sido fundada por Abu Hanifa, e é considerada como a maior defensora das ciências tradicionais e da cega obediência às tradições. [No] caso do Bangladesh, 91% do total da população muçulmana é hanafita”. O Tribunal identifica a Sharia com o Alcorão, o que não é inteiramente rigoroso, já que a Sharia tem outras fontes – a Suna, o Ijma e o Quiás [cf. e.g. SULEIMAN VALY MAMEDE, O Islão e o Direito Muçulmano, Lisboa, Edições Castilho, 1994, p. 24]. É por referência à 65.ª sura do Alcorão que o Tribunal justifica a caracterização do regime do talaq (incluída na lista dos factos dados como provados) nos seguintes termos: “De acordo com a Sharia a prerrogativa do talaq é exclusiva do cônjuge marido. Segundo a Tradição Islâmica [radicada na Sharia], esta modalidade de divórcio – Bayen Talaq – opera pela declaração do marido, ao proferir três vezes a palavra Talaq (divórcio por repúdio, irrevogável), perante terceiros, designadamente perante um notário”. Alguns dos aspetos do regime assim descrito não constam da sura corânica, sendo antes o resultado de desenvolvimentos jurídicos operados com base nas outras fontes da Sharia e/ou através de legislação estadual adotada em conformidade com o disposto no Alcorão, como é o caso da Muslim Family Laws Ordinance, 1961. Contrariamente ao que o Tribunal parece sugerir a dado passo, este diploma legal não é, em bom rigor, “Lei Islâmica” (i.e. de origem divina), mas sim lei estadual (de origem humana) adotada para dar cumprimento aos preceitos e princípios da Lei Islâmica (Sharia).

Patrícia Jerónimo

Citar como: JERÓNIMO, Patrícia, “[Anotação ao acórdão do] Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 1378/18.YRLSB-7, 19.11.2019”, 2020, disponível em https://inclusivecourts.pt/jurisprudencia2/

REFERENCES IN THE LITERATURE: n.a.

 

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